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Carolina Mendes Thame Professora
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O fazer docente comprometidocom a educação para as relaçõesétnico-raciaisLITERATURA E LÍNGUA PORTUGUESAAPRESENTAÇÃOEsta publicação reúne uma série de materiais elaborados pelo programa Escrevendo oFuturo, com enfoque nas questões étnico-raciais na educação, para apoiareducadoras(es) no planejamento de aulas de Literatura e Língua Portuguesa.O Escrevendo o Futuro é uma iniciativa do Itaú Social, com coordenação técnica doCenpec, que desenvolveu, entre os anos de 2002 e 2024, ações de formação paraprofessoras e professores de Língua Portuguesa das escolas públicas do Brasil.Dentre as ações de maior destaque estão: a publicação dos Cadernos Docentes, comorientações para trabalhar os gêneros poema, memórias literárias, crônica, artigo deopinião e documentário em sala de aula; a publicação da revista Na Ponta do Lápis, decaráter educativo e cultural, com o objetivo de apoiar a prática de docentesinteressados no ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa; o oferecimento dediversos cursos on-line, com foco na formação de professoras(es) para o ensino deleitura e escrita; e a realização da Olimpíada de Língua Portuguesa, um concurso deprodução de textos de diversos gêneros que mobilizou professoras(es) e suas turmasao longo de sete edições;Estão reunidos neste especial diversos artigos, entrevistas, planos de aula e textosliterários para inspirar e repertoriar um fazer docente comprometido com a educaçãoantirracista.Boa leitura!1Sumário1. Introdução………………………………………………………………………………………………………………………………072. Artigos reflexivos sobre o ensino de história e cultura afro-brasileira eafricanas nas escolas……………………………………………………………………………………………………………………092.1 Educação para as relações étnico-raciais-ERER: o que nos dizem os 20 anosda Lei 10.639?, de Gina Vieira Ponte…………………………………………………………………………………………..112.2 Feminismo negro – para um novo marco civilizatório, de Djamila Ribeiro…..….232.3 Unindo o discurso à prática: não basta ser antirracista. É preciso ler o que asautoras e autores negros escrevem, de Bel Santos Mayer……………………………………………..302.4 Por que trabalhar literatura afro-brasileira na escola?, de Lara Rocha…………..392.5 A contação de história para o empoderamento da criança negra e a literaturanegro-brasileira do encantamento infantil e juvenil: mudanças necessárias deparadigmas, de Kiusam de Oliveira…………………………………………………………………………………………….482.6 Machado de Assis, um escritor negro, de Esdras Soares………………………………………..642.7 De ex-escravizado e autodidata a “autor”: a produção literária de Luiz Gama,de Ligia Fonseca Ferreira………………………………………………………………………………………………………………...752.8 Literatura, afeto e comprometimento social: a importância da obra deConceição Evaristo na educação, de Oluwa Seyi………………………………………………………………….862.9 Maria Firmina dos Reis - inaugurando a literatura de autoria feminina negra,Luciana Martins Diogo……………..………………………………………………………………………………………….…………….912.10 Quarto de despejo como diário de Carolina Maria de Jesus: armadilhas epossibilidades em sala de aula, de Fernanda Sousa …………………………………….…………………1002.11 Nei Lopes e José Craveirinha: poemas de dormir e de acordar amor, de Dinha(Maria Nilda de Carvalho Mota)……………………………………………………………………………………………………1062.12 É Educação quando morre o coração?, de Lara Rocha……………….………….………………11322.13 As quizambas da Educação Integral: uma perspectiva a partir do amor e dadescolonização, de Lara Rocha……………………………………………………………………………………………………1222.14 Educação Integral e ensino de Língua Portuguesa: diálogos necessários, deGina Vieira Ponte………………………………………………………………………………………………………………………..……….1312.15 Catucá: de passagem por uma comunidade educadora, de FernandaMendes……………………………………………………………………………………………………………………………………………………1402.16 A importância de celebrar o 20 de novembro – Dia da Consciência Negra, deWashington Góes…………………………………………………………..……………………………………………………………………1483. Planos de aula e materiais de orientações para a prática em diálogo com aLei nº 10.639/03……………..……………………………………………………………….……………………………………………1563.1 A escrita negra de Machado de Assis em seus contos e crônicas, elaboradopor Esdras Soares………………………………..…………………………………………………….………………………………………1573.2 Escritas de si em diálogo: um trabalho com o gênero diário, elaborado porLara Rocha e Eduarda Ribeiro Rodrigues…………………………..…………………………………………………2003.3 Nossas vivências e as escrevivências de Conceição Evaristo, elaborado porElaine de Azevedo, Marilane Leite e Karla de Souza……………………………………………………….2263.4 Leitura literária: debatendo a violência nas escolas por meio da literatura,elaborado por Lara Rocha e Eduarda Ribeiro Rodrigues……………………………………..….……2423.5 Literatura afro-brasileira: proposta de trabalho com o livro Leite do Peito, deGeni Guimarães, elaborado por Lara Rocha………………………………..………………………………………2654. Artigos reflexivos sobre o ensino de história e culturas indígenas nasescolas……………………………………………………………………………………………………………………………………………3064.1 Educação Escolar Indígena: Existir para resistir!, de Zilma Rosana AcevedoOliveira………………………..…………………………………………………………………………………………………………………………30834.2 Um breve panorama das línguas indígenas do Brasil, de Anari BrazBomfim..………………………..…………………………………………………………………..………………………………………………….…3184.3 Um tronco para chamar de nosso, de Trudruá Dorrico………………………..…………….…3284.4 As línguas dos povos indígenas no contexto escolar, de Luã Apyka………………3354.5 Artes verbais indígenas: portais para uma educação pluriversal, de SonyFerseck………………………..………………………………………….………………………..……………………………………………….……3414.6 Lê, para se encontrar no mundo: a literatura indígena na sala de aula, deJeane Almeida da Silva………………………..………………………………………….………………………..………………..…3544.7 Pela literatura, conhecer jovens indígenas brasileiros, de MarinaAlmeida………………………………………………………………………………………………………………………………………………….3665. Planos de aula e materiais de orientações para a prática em diálogo com aLei nº 11.645/08……………..……………………………………………..………………….………………………………………..…3815.1 Apresentando a literatura indígena: orientações para a leitura do conto “Agênese Maraguá e a origem do mundo”, de Yaguarê Yamã, elaborado por SonyFerseck………………..…………………………………………………….………………………….………………………..……………………3825.2 Sinopse no estilo “Netflix”: será que essa lenda daria um filme?, elaborado porLuciana Soares…………………..……………………………………………………………….………………………..…………………3956. Entrevistas…………..……………………………………………..………………….……………………………………………4216.1 Macaé Evaristo: “A alegria é revolucionária” – Em defesa do direito àeducação e da justiça social…………………………………………………………….………….………..……………………4216.2 Jeferson Tenório: Da literatura em sala de aula à sala de aula naliteratura………………………………………………………………………………………………………………………………………………..4326.3 CUTI Luiz Silva: Por uma literatura negro-brasileira…………………………..………..…………4426.4 Bel Santos Mayer: Literatura para nos tirar do lugar…………………………………………..…45246.5 Raquel Trindade: Uma vida dedicada à arte……………………………………………………………....4686.6 Conceição Evaristo: Nasci rodeada de palavras…………………………………………………..……4776.7 Roberta Estrela D’Alva: A poesia sempre vence…………………………………………………..……4886.8 Lilia Guerra: Perifobia, "a periferia é sempre mais distante".................................4996.9 Daiara Tukano: Ideias para reflorestar o mundo…………………………………………………..……5076.10 Yaguarê Yamã: Pelos livros, trazer a beleza da aldeia para a cidade……………5197. Podcast Educação na ponta da língua……....………………….…………………………………….……5297.1 Episódio #01 – História e cultura dos povos indígenas na educação………………5307.2 Episódio #04 – Línguas e literatura indígena na escola……………………………………..…5317.3 Episódio #07 – História e cultura afro-brasileira na escola……………………………….5327.4 Episódio #08 – Literatura afro-brasileira na escola………………………………………………5338. Textos literários……………………………………………………………………………………………………………..…5348.1 Cremos, de Conceição Evaristo……………………………………………………..……………………………………5348.2 Tatuapé. O caminho do tatu, de Daniel Munduruku……………………………………………….…536oriundos de ações que visam desconstruir os efeitos da estrutura opressora sobre apopulação negra, possibilitando uma positivação na esfera das relações raciais e daprópria constituição da identidade da população negra.Referências bibliográficasCARREIRA, D.; SOUZA, A. L. S. (Org.). Indicadores da Qualidade na Educação: RelaçõesRaciais na Escola / Ação Educativa, Unicef, SEPPIR, MEC. São Paulo: Ação Educativa,2013, 1ª ediçãoDALCASTAGNÈ, R. A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004. In.:Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n° 26, Brasília, jul.-dez. 2005, p. 13-71.DUARTE, E. A. Literatura afro-brasileira: um conceito em construção. In: Estudos deLiteratura Brasileira Contemporânea. Nº 31. 2008.GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relaçõesraciais no Brasil: uma breve discussão. In: BRASIL. Educação Anti-racista: caminhosabertos pela Lei federal nº 10.639/03. Brasília, MEC, Secretaria de educação continuadae alfabetização e diversidade, 2005. P. 39 - 62.46Sobre a autoraLara Rocha é mestra em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, naárea de Literatura Afrobrasileira e Educação Antirracista pela Universidade de SãoPaulo (USP). É Coordenadora de Educação do CEERT. Foi professora de LínguaPortuguesa e coordenadora pedagógica da rede municipal de São Paulo. Além disso, foipor 10 anos coordenadora pedagógica e educadora no Cursinho Popular FlorestanFernandes. Participou da concepção e execução do Projeto Travessia - Remição depena através da leitura na Penitenciária Feminina da Capital. Atua também comoconsultora sobre Educação e Diversidade em instituições privadas e do terceiro setor.Contato: lararocha.9.2@gmail.com472.5A contação de história para o empoderamento dacriança negra e a literatura negro-brasileira doencantamento infantil e juvenil: mudanças necessáriasde paradigmasKiusam de Oliveira“Eu gosto de pensar que a escrita literária que parte de experiências reais econcretas deve se manter em uma estética curativa e poética. Por quê?Simplesmente, porque penso ser o enfrentamento de tudo aquilo que nosapavora, estratégia fundamental para o fortalecimento do nosso emocional,inclusive, valendo para as infâncias e juventudes.Nesse sentido, o verbo ressignificar é a ação que deve ser retroalimentadacotidianamente, em se tratando da Educação para as Relações Étnico-Raciaispara crianças e jovens” (Kiusam de Oliveira, 2022).ApresentaçãoO texto aqui apresentado pretende se inscrever em uma seara disruptiva com ocampo de contação ou narração de histórias muito divulgado em cursos e/ou artigosaté o presente momento, afinal, para pensar histórias capazes de empoderar a criançanegra através de textos escritos e narrados, priorizar categorias como raça e gênero é48necessário. Aqui, pretendo apresentar uma possibilidade decolonial20 para pensar umato tão comum como é o de contar histórias. A minha opção é pelo uso do termocontação e não narração, por entender que o primeiro remonta o tempo de minha mãe,avó e bisavó, durante momentos inesquecíveis em que nos reuníamos no quarto em diade chuva forte e sem energia elétrica, à luz de uma vela, para criar com as mãos,bonecos de sombras na parede, rindo e criando histórias.Conceito chave aqui também é Ancestralidade, que tem determinado minhajornada pelo mundo e no campo da escrita, e a base teórica está fincada na PedagogiaEcoancestral (2019; 2021) e na Literatura Negro-Brasileira do Encantamento Infantil eJuvenil-LINEBEIJU, onde afirmo queSe destaco o valor da estética criativa e poética de um texto, cuja finalidade deresgatar a nobreza identitária das/os leitoras/es corrompida pelas ausênciasda maioria da população brasileira num livro de literatura infantil e juvenil, éporque acredito ser a literatura um dos campos das artes valorizado eapreciado por crianças e jovens, pelo menos enquanto se encontram no espaçoescolar e quando se identificam com a obra, quando se veem nela (OLIVEIRA,2022, p. 8).Mudança de paradigma necessário aqui é compreender que o continenteafricano, Berço da Humanidade, não cabe na Europa, nem nas Américas, portanto, asobras, os pensamentos e a história do continente africano têm um protagonismo nahistória do planeta Terra impossível de ser compreendido sob óticas reducionistas e20 Decolonial/decolonialidade é uma escola de pensamento com o objetivo de libertar a produção doconhecimento da episteme eurocêntrica. No meu caso, proponho um olhar decolonial voltado para asquestões raciais, olhando para o continente africano como o Berço da Humanidade, reparando o quepodemos, num movimento sankofa, olhar para trás, para ancestralidade e trazer em termos deconhecimentos para o presente a fim de recriar a vida de forma digna e saudável.49ocidentalizadas que historicamente só têm minimizado seus feitos, suas descobertas.Nesse sentido defendo que é necessário pesquisar, descobrir, criar e utilizartecnologias agenciadas pelo olhar negro, daquelas e daqueles que conseguiramconstruir um olhar crítico e racializado sobre o país.Assim, com essa criticidade, criar e contar histórias negro-brasileiras é muitomais do que escolher um livro com personagens negros ou um mito afro- brasileiro ouafricano para ser recontado: em nome da inteireza que deve estar presente em tudo oque se faz é necessário, para além de reproduzir uma história (coisa que um gravadorpode muito bem executar), viver, sentir, aprofundar, mergulhar, africanizar, racializarolhares e sentidos no tocante a se despir identitariamente mediante águas profundas edesconhecidas, retirando da frente qualquer preconceito e pré-julgamento sobre tudoo que ouviu de orelhada. Somente assim, será capaz de entender a minha perspectivadecolonial em termos metodológicos para contar histórias a partir da necessidade dedespertar o encantamento ou mesmo o reencantamento da criança negra pelo própriocorpo, assim, reforçando a importância do conceito de encantamento dentro dessecampo teórico que tenho defendido (LINEBEIJU, 2022).Sobre a arte de contar históriasAlguns pontos são necessários para pensar o ato de contar histórias em umaperspectiva decolonial e negrorreferenciada: o primeiro é entender que o continenteafricano é o Berço da Humanidade, conforme estudos e pesquisas, inclusive decientistas e estudiosos negros, que já o afirmavam desde que o mundo é mundo. Opesquisador Cheick Anta Diop foi incansável em apontar tal verdade. Existem diversasformas de abordar as oralidades africanas e perpetuá-las: uma delas é através dos50mitos de tradição oral, muito comum em sociedades que cultuam os orixás, por exemplo,os iorubá: durante a iniciação para se tornar babalaô, a pessoa deve aprender umaquantidade enorme de histórias/mitos que dizem respeito aos fatos cotidianos queaconteceram em tempos imemoriais, conhecidas como “histórias primordiais”, afinalpara eles tudo não passa de repetição.Reginaldo Prandi (2001) afirma que “Identificar no passado mítico oacontecimento que ocorre no presente é a chave da decifração oracular” (p. 18). NoBrasil, com as mortes dos babalaôs, o jogo de búzios foi perdendo essa característicaligada ao hall de histórias e quantidade que o iniciado deveria saber, passando os mitosa ocuparem o lugar didático da explicação da origem do planeta, arquétipos de cadaorixá, etc. Segundo Clyde W. Ford21 (2000): os mitos e seus personagens têm potênciapara construir ou reconstruir identidades, ser referência para um vir a ser, umtornar-se herói e heroína da própria história em sua caminhada épica. E é isso que,para mim, na contação de histórias importa: possibilitar caminhos para que crianças,jovens e adultos negras(os) construam histórias edificantes, épicas.No meu caso, os mitos deram vida à minha alma quando jovenzinha, tendo sidodestruída pelo racismo vivido em minha infância: minha mãe oscontava para mim;quando cheguei no grupo de trabalho Balogun, do Movimento Negro Unificado (MNU),coordenado por Adomair e Ilma, também ouvia esses mitos lá, narrados por Adomair.Quanta potência! Isso tudo me fez acreditar que os mitos africanos para crianças,jovens e adultos negras(os) que vivenciaram práticas racistas são caminhos possíveis21 Autor do livro O herói com rosto africano (Selo Negro, 2000) foi diretor-fundador do IAM-Instituto deMitologia Africana, em Washington. Nesse livro ele traz centenas de mitos pertencentes ao continenteafricano, em diversas culturas. Ele dialoga com Joseph Campbell. Busca a cura para o grande traumahistórico da humanidade: a escravidão.51de autopreservação e resgate do amor próprio, do orgulho de ser quem é. No Brasil,quais heróis e heroínas negros e negras são conhecidos? Quais heróis e heroínasnegros e negras foram apresentados para você na escola através dos livros didáticos?Mas, certamente, você conheceu como heróis nacionais Duque de Caxias e Tiradentesou mesmo Martins, Miragaia, Dráuzio e Camargo, certo?Pois bem. Essa invisibilidade imposta aos heróis e heroínas negros e negras,parte importante de nossa história, é muito ruim, pois faz com que pessoas negrascresçam, desde a infância, sem referências negras. Imagine se pessoas negrascrescessem tendo como referências heroínas como Aqualtune, Dandara, Carolina Mariade Jesus, Tia Ciata, Mãe Menininha, Luiza Mahin? Se assim fosse, será que mulheresnegras hoje ainda estariam lutando para impor suas vozes?Recontar histórias que traduzem os feitos negros tem a função de fortalecer asidentidades, pessoais e coletivas, trazer à tona informações fundamentais dos feitosnegros escondidas pela branquitude, empoderar quem ouve tais contações. Históriasnegras podem ter o potencial de despertar o inconsciente coletivo adormecido nosescombros da história, provocando um renascimento via encantamento, afinal, a arte decontar histórias negrorreferenciadas tendo o conceito encantamento como central deveatingir “diretamente as crianças negras quando ingressam na escola, essas devemaprender a se encantar pelo próprio corpo, a partir da criação de um contracorponegro que almeja combater qualquer prática discriminatória” (OLIVEIRA, 2022, p. 11).Indo mais a fundo na pedagogia ancestralFelizmente, o MNU tem atuado historicamente abrindo caminhos, inclusive, paraoutras organizações que visam o empoderamento de pessoas negras nos campos da52política, economia, saúde, habitacional, social de forma geral, a fim de trazervisibilidade às causas e necessidades dessa população. O importante aqui é queentendam que é impossível transformar algo dessa magnitude dentro de uma caixinhaquadrada já existente: para que uma transformação aconteça é fundamental repensaras bases que estruturam tal caixinha e desestruturá-la conscientemente, sabendo paraonde se quer ir, caso contrário, tudo o que vier a partir daquele molde já existente serádesestruturado sem qualquer aviso, de surpresa.A Pedagogia Ecoancestral parte de uma questão central: se quando osportugueses invadiram o Brasil, olharam e apontaram para os povos indígenas aquipresentes os categorizando como não humanos, como os outros, os pretos da terra, ossem almas etc., lançaram um olhar racializado determinante como forma de serelacionar, e que perdura até hoje, por que tanta hipocrisia em afirmar que as relaçõesnos campos político, social, econômico, espiritual se dão a partir dessa lógica, de umcorpo racializado, imposto pela branquitude?Sendo assim, a Pedagogia Ecoancestral consiste em pensar as relaçõeseducacionais e educativas a partir de uma corporeidade negra, um contracorponegrorreferenciado capaz de entender que resistir às violências também é um atosagrado. O contracorpo negro aqui é entendido como um “corpo-templo- resistência”(OLIVEIRA, 2019). É fundamental compreender que “os conhecimentos ancestrais [...]para qualquer tipo de aprendizagem, que podem ser encontrados em plataformasdiversas como histórias de vidas, memórias, provérbios, mitos, músicas, performances[...] (idem, ibidem, p. 15) são caminhos possíveis para ações capazes de fortalecerpessoas negras em qualquer tempo. A intencionalidade para o empoderamento dacriança negra aqui é categoria fundamental para pensar a contação de história.53Destaco os 10 princípios da Pedagogia Ecoancestral para que se tenha em menteantes de escolher e contar uma história:1. É uma pedagogia feminina e que combate o sexismo: questões de gênero sãofundamentais ao se escolher uma história para ser contada, afinal, taishistórias devem colocar a mulher em posição de poder, ocupando diversasprofissões, não só a destacando pela subalternidade.2. Entende as infâncias como territórios de ação para os Direitos Humanos: ashistórias contadas devem estar pautadas num escopo de respeito aos direitoshumanos existentes no mundo, sem desmerecer ninguém.3. Demonstra consciência de que existe a colonialidade no e do poder: entendeque a abolição de 1888 foi e permanece inconclusa, pois não considerou umamalha de proteção para ex-escravizados que só conheceram no Brasil ocativeiro e, nesse sentido, o poder continua a se dar de forma a utilizarrecursos do período colonial como base para ação e pensamento ainda hoje.4. Estabelece ruptura a partir da decolonialidade: pensamento decolonial aquise faz necessário, refletindo sobre as marcas da colonialidade do e no poderno aqui e agora para buscar romper com tais formas tão arraigadas em nossasociedade de ser e estar.5. Revela necessidade de emancipação epistêmica: para conseguir romper comformas coloniais de agir e pensar é necessário expandir conhecimentos edefendo a busca por intelectuais decoloniais, que buscam epistemologiasnegrorreferenciadas para suas pesquisas.546. Reconhece a importância da formação para a Educação das RelaçõesÉtnico-Raciais: pensar, estudar, pesquisar, considerar esse ponto para sepensar qualquer setor do país é necessário para o fortalecimento dasociedade.7. Luta por uma educação antirracista: é dever de todas as pessoas lutar contrao racismo e ser antirracista deve ser apreciado como um valor a serconquistado, afinal, o racismo e o racista matam e a educação, a partir dainvisibilidade que tem dado aos feitos negros.8. Dá-se na relação profunda com o ecossistema: somos todos seresecológicos, a natureza não está fora de nós, somos natureza, portanto, cuidarde nós como cuidamos do planeta ou cuidar do planeta como cuidamos de nós,deve ser a nossa máxima.9. Ressignifica o conceito de corpo para o de corpo-templo-resistência,destacando que um corpo é sempre político: a busca pela construção de umcontracorpo negrorreferenciado é necessário para pessoas negras quecrescem em sociedades racistas, pois aprender a se defender e a defender seuterritório-corpo é fundamental. Nesse sentido, a busca pela compreensão deque o corpo negro também é sagrado e por isso, deve aprender a resistir, éfundamental.10. Considera a ancestralidade africana e seu protagonismo no planeta Terra:considerar África como o Berço da Humanidade, o princípio de tudo, éfundamental. Assim, estudar autoria africana em pesquisas se faz necessário.55Além disso, é uma Pedagogia que entende a infância no plural, como múltipla –infâncias – e que deve ser cultuada durante toda a vida, pois é um período essencial eque se estende para além de uma certa idade. Nesse sentido, é necessário se atentarpara como as práticas violentas e racistas atacam os corpos das crianças negras desdeas brincadeiras altamente racializadas pelas próprias crianças (OLIVEIRA, 2019).O trabalho pedagógico deverá acontecer dentro da tríade Direitos Humanos,Infâncias/Juventudes e Educação para as Relações Étnico-Raciais, para que oacolhimento e conscientização sobre como o racismo impacta as vidas das criançasnegras seja promovido ecombatido.Pensando a literatura negro-brasileira no encantamento infantil e juvenil(LINEBEIJU)Ainda contribuindo para mudança de paradigma do olhar para quem pretendecontar histórias negrorreferenciadas, pensar a literatura é fundamental e aquiconsidero a afirmação de Carlos Moore (2014): “nada é mais importante para umacriança que um conto que a insira no mundo dos humanos, dos animais, das coisas.Essa inserção faz-se por meio do apelo à sua imaginação” (p. 6).Tendo isso em mente, é fundamental compreender que a LINEBEIJU é parteimportante da Pedagogia Ecoancestral, se apresentando como uma vertente literárianegro-brasileira, proposta por CUTI (2010). Para ele, essa literatura, a negro-brasileira“nasceu da população negra fora da África, e de sua experiência no Brasil” (p. 44). Ecomplementa que a literatura “precisa de forte antídoto contra o racismo nelaentranhado” (idem, ibidem, p. 13) afinal, no Brasil, “o racista acaba sendo concebido56como um ente sem consciência concreta, um fantasma que, vez ou outra, resolve atacaros negros” (p. 13).Oliveira (2022) afirma que a LINEBEIJU entende perfeitamente a subjetividade dapessoa negra que, historicamente, está ligada à exclusão. Portanto, a LINEBEIJU é umaliteratura que propõe “o acolhimento, a inclusão e o combate ao racismo” (OLIVEIRA,2022, p. 7), coisa que a categoria literatura brasileira, no geral, jamais considerouseriamente. Desempenha, portanto, um papel importante para se pensar a diversidadecomo fundamental na abordagem literária, buscando alcançar autores de diferentesorigens, uma vez que a literatura também serve para “inculcar, no imaginário brasileiro,estereótipos racistas a partir das construções de seus personagens e da forma comque as narrativas são desenvolvidas” (idem, ibidem, p. 7).A LINEBEIJU, portanto,… é um território que reconhece a violência ocasionada pelo racismo e admiteque ninguém deve caminhar sozinho, uma vez que estamos conectados. Somospartes de um todo que inclui tudo o que é visível e invisível, o tangível e ointangível, as subjetividades (idem, ibidem, p. 6).Cinco obeliscos sustentam a LINEBEIJU, a saber:● Ancestralidade: saberes ancestrais ativados na contemporaneidade.● Encantamento: é preciso se encantar pela própria história e pela história dopovo negro.● Pedagogia Ecoancestral: o que temos a aprender como seres ecológicos.57● Mulher Negra: entender que ela é o centro de absolutamente toda a história dahumanidade e é fundamental que continue sendo.● Afrocentricidade: a necessidade de entender sobre agenciamento negroafricano e negro-brasileiro torna-se fundamental aqui.Nesse sentido, conhecer a legislação e educação brasileiras faz parte daPedagogia Ecoancestral e da LINEBEIJU: isso garantirá um olhar dos direitos enquantocidadãos que todas as pessoas têm, independentemente de raça/cor, origem étnica esocial, idade etc.Em termos da legislação brasileira, indico inicialmente para cada profissionalfazer uma pasta com cópias dos seguintes documentos: Lei de Diretrizes e Bases daEducação (Lei 9394/96) - estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais e, em seusartigos 2-A e 79-B, desde a promulgação da Lei 10.639/03, tornou obrigatório oensino da História da África e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica; oPlano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para aEducação das Relações Étnico- Raciais e para o Ensino da História e CulturaAfro-Brasileira e Africana. Além disso, leis como a Constituição da RepúblicaFederativa do Brasil, de 1988, a Lei CAÓ, nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que definecomo crime atos resultantes de preconceito de raça ou de cor; o Estatuto da Criança edo Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990); o Estatuto da Promoção daIgualdade Racial (Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010); e a Lei 14.532 de 2023, quetipifica a injúria racial como crime de racismo.58Além disso, Oliveira (2022) afirma que “Para aportar tamanhas mudanças deolhar, epistemologias negras elaboradas por pesquisadores(as) e/ou intelectuaisnegros(as) cada vez mais têm vindo à tona, afinal o continente africano não cabe naEuropa” (p. 8).Recontando histórias de autoria negra: a contação de históriasNa Pedagogia Ecoancestral (na época ainda chamada de Pedagogia daAncestralidade), Oliveira (2019) explica que...antes de tudo, um posicionamento político contrário ao que se estabeleceu nopaís como uma lógica incontestável, direcionada ao branco, considerado norma,enquanto o não-branco é o desvio. É uma pedagogia que se opõe aocolonialismo e à colonialidade, que continuam reafirmando a desumanidade denegros e indígenas. Ela se opõe à hegemonia epistemológica eurocentrada,propondo uma forma de ser-pesquisar-conhecer-pensar-juntar-articular-agirque reconheça o continente africano como o berço da humanidade e se dá apartir da criação ou recriação de laços e formas afeto-coletivas deacolher-ouvir- aprender-falar-trocar-compartilhar, protagonizada não sópelas/os mais velhas/os, mas também pelas crianças e jovens.Nesse sentido, o ato de contar histórias negrorreferenciadas com o propósito defortalecer crianças, jovens e adultos para que se empoderem necessita de um olharcuidadoso para as seguintes etapas:1. A escolha das histórias;2. A mediação da leitura;3. Uma conversa mergulhada na temática escolhida.59Isso entendido, ir para a contação ciente de que todo o corpo negro deve serpreparado para se tornar um contracorpo afrodescendende (2000) e/ou umcorpo-templo-resistência (2019), compreendendo-o como um corpo que é negro, divinoe que, por isso, deve aprender a resistir contra qualquer tipo de violência que venha nadireção dele, torna-se essencial para o sucesso da ação.Ponto fundamental é a busca por histórias que tragam situações de conflitoétnico-raciais e caminhos de superação das mesmas: crianças devem perceber que nãovivenciam solitariamente situações de exclusão por conta do racismo, mas que o queviveram pode ser vivido por tantas outras crianças e esse é o poder de uma históriaque traz situação real de racismo e caminhos de superação, como oportunidade paraque as crianças debatam e construam possibilidades para solucionar o assunto. Nessesentido, histórias pautadas em fatos reais vividos pelas crianças e jovens trazem apossibilidade de reflexão e superação de todas as limitações impostas pelo racismo.Outro ponto importante é usar diversas possibilidades de ação, plataformas,recursos para contar uma história. Para isso, eu não recrio a roda: simplesmenteconvoco a grande educadora Azoilda Loretto da Trindade (in memorian) com seu grandelegado em Educação, com seus Valores Civilizatórios Afro-brasileiros (A Cor da Cultura),que são: circularidade, religiosidade, corporeidade, musicalidade,cooperativismo/comunitarismo, ancestralidade, memória, ludicidade, energia vital eoralidade. Ao analisar a história a ser contada, você pode verificar se ela contém taisvalores e/ou, os princípios e valores disruptivos da Pedagogia Ecoancestral e LINEBEIJU,capazes de fortalecer crianças de todos os tempos.A pessoa que vai contar histórias pode usar de todos os recursos que tem emmãos para contar uma história: quero dizer com isso, todos os seus talentos. Entender60os pontos fortes que a pessoa que contará a história possui é fundamental. Ela pode tertalentos musicais para o canto ou tocar instrumentos e isso pode e deve estar presentena contação; a pessoa que contará a história pode ter talento para desenhar/pintar:por que não um painel feito com as próprias mãos para decorar o espaço? A pessoaque contará a história pode saber fazer bonecos: como desperdiçar esse talento? Apessoa que contará a história pode saber dançar: como não aproveitar essa base emdança? A pessoa que contará a história pode saber costurar: como não customizar seupróprio figurino? A pessoa que contaráa história tem presença e o que de melhor faz écontar uma história de forma simples, sem alegorias, sem figurinos, de forma profunda:jamais será vista de forma diminuta por conta disso, afinal, trabalha muito bem com aplataforma dada pelos ancestrais, o próprio corpo. É isso! Simples assim.O fundamental dentro dessa metodologia para contar histórias capazes deempoderar pessoas negras de todas as idades é trazer uma verdade vivida e conhecidapor nós: o quanto de potência sabemos existir em cada ser negro que vive nesseplaneta e como é necessário impulsionarmos a roda da história no sentido de semovimentar em prol da construção das histórias de empoderamento dos feitos negros.Um pensamento central aqui é entender como foi que a pessoa que vai contar a históriavestiu a pele negra em diversas etapas da vida.FinalizandoSim, o ato de contar histórias para empoderar pessoas negras requer que sefaça um inventário sobre a própria vida em uma perspectiva da racialidade: revisitarporões da memória, vasculhar, mergulhar, buscar entender no tempo presente asexperiências vividas desde um passado remoto até o mais recente, buscando perceber61o que sente sobre tudo o que se lembra. É fundamental, também, se atentar para o quehavia sido esquecido e de repente, veio à tona: “memórias subterrâneas”, como MichelPollak (1989) afirma em seu clássico “Memória, Esquecimento, Silêncio”. Importantecompreender, no próprio corpo de quem irá contar a história, os pontos de cura eadoecimento e trabalhar no sentido de potencializar a cura e enfrentar as fontes deadoecimento para eliminá-las. Entender que existe uma literatura capaz de curar eoutra capaz de adoecer faz todo o sentido dentro do pensamento decolonial emliteratura e contar histórias negras de cura para o fortalecimento das lutas antirracistasse faz urgente e necessário para pessoas negras de todas as idades. Um olhargeneroso e amoroso sobre as trajetórias coletivas negras se faz necessário.Esse é um texto que fala sobre vida negras que também importam e podem serfortalecidas através da contação de histórias. Falo sobre vida!62ReferênciasCUTI (Luiz Silva). Literatura negro-brasileira / Cuti – São Paulo: Selo. Negro, 2010. –(coleção consciência em debate/coordenada por Vera Lúcia Benedito).FORD, Clyde W. (2000). “O herói com rosto africano: mitos da África”. Ed. Selo Negro.MOORE, Carlos. Prefácio. In. OLIVEIRA, Kiusam. O mar que banha a Ilha de Goré, 2014, p.6.OLIVEIRA, Kiusam de. Pedagogia da ancestralidade. SESC online. Disponível em:https://portal.sescsp.org.br/online/artigo/13431_PEDAGOGIA+DA+ANCEST%20RALIDADE. 2019. Acesso em outubro de 2024.LINEBEIJU. Literatura Negro-Brasileira do Encantamento Infantil e Juvenil. BeloHorizonte: Nandyala, 2022. Série “Bagagem Literária”, v. 1.Sobre a autoraKiusam de Oliveira é pedagoga habilitada em Administração Escolar, OrientaçãoEducacional e Deficiência Intelectual (USP), bailarina, coreógrafa e formadora deprofissionais da educação na perspectiva antirracista desde 1992 e presta consultoriaem empresas para a implementação de uma política antirracista. É autora de diversoslivros como O mundo no black power de Tayó, Com qual penteado eu vou? e Omo-oba:Histórias de princesas e príncipes. E-mail para contato: kiusam.oliveira@gmail.com63https://portal.sescsp.org.br/online/artigo/13431_PEDAGOGIA+DA+ANCEST%20RALIDADEhttps://portal.sescsp.org.br/online/artigo/13431_PEDAGOGIA+DA+ANCEST%20RALIDADEmailto:kiusam.oliveira@gmail.com2.6Machado de Assis, um escritor negroEsdras SoaresJoaquim Maria Machado de Assis nasceu em 1839, no Morro do Livramento, Riode Janeiro. A casa em que viveu era próxima ao Valongo, região de desembarque deafricanos escravizados entre os séculos XVIII e XIX. Machado era negro, neto depessoas escravizadas que haviam conquistado a liberdade e filho de Francisco José deAssis e de Maria Leopoldina Machado da Câmara.O escritor não teve acesso à educação formal e quem lhe ensinou as primeirasletras foi sua madrasta, Maria Inês, que o criou após a morte da sua mãe, ainda nainfância. Quando ele tinha 12 anos de idade, seu pai também faleceu, e ele passa aajudar a madrasta vendendo doces nas ruas. Aos 16 anos, começa a trabalhar comoaprendiz na Imprensa Nacional e, mais tarde, vai para a Livraria Paula Brito, umimportante local de encontro entre jornalistas e escritores da época. Depois, ingressano funcionalismo público, setor onde fez carreira.Machado inicia sua trajetória como escritor publicando crônicas em jornais.Depois, publica contos e romances que o levaram a um amplo reconhecimento ainda emvida. Hoje, o fundador da Academia Brasileira de Letras (ABL), considerado o maiorescritor brasileiro, é o expoente máximo do Realismo no país e é conhecidointernacionalmente, tendo publicado dezenas de obras, entre romances, contos,64crônicas, poemas, dramaturgia e crítica literária e teatral. Por isso, está semprepresente nos materiais didáticos e nas propostas de leitura literária nas escolas.O que nem todas as pessoas sabem é que Machado de Assis era um homemnegro. Ao perguntar a uma turma de estudantes, por exemplo, a respeito da imagemque inicialmente lhes vem à cabeça ao pensarem em Machado (ou sobre o “maiorescritor brasileiro”), provavelmente surgirá a figura de um homem branco1. Isso aconteceporque há uma predominância de obras literárias publicadas por homens brancos, mastambém porque o autor passou por um processo de branqueamento ao longo do tempo.Nas próximas linhas, vamos explorar as origens históricas dessa questão,discutir sobre porque é relevante saber que Machado era um escritor negro e refletirsobre como podemos adotar essa perspectiva para elaborar propostas de leitura dassuas obras.As representações de Machado de AssisNa segunda metade do século XIX, chegaram ao Brasil diversas teorias raciais,também chamadas de darwinismo racial, que diziam que havia diferenças inatas entrebrancos e não-brancos, inclusive do ponto de vista biológico. Essas teorias erampredominantes nas ciências sociais, na biologia e na medicina, servindo de base para aeugenia, que defendia a separação e o isolamento das populações, estimulando areprodução da branca, tida como superior, e buscando o extermínio da negra e daindígena, consideradas inferiores.65A eugenia, por sua vez, fundamentou a teoria do branqueamento, que afirmavaque o Brasil se tornaria um país totalmente branco no futuro. Isso seria possível pormeio de uma política de imigração implementada pelo governo brasileiro, que trouxemilhões de europeus para o Brasil com a intenção de que se misturassem à populaçãonegra, que desapareceria gradualmente. Os seguidores dessas ideias racistasacreditavam que o país se fortaleceria com características europeias e que amiscigenação era a chave para tornar o Brasil uma nação branca, tanto em seu fenótipoquanto na sua cultura.Assista aos vídeos da professora Lilia Schwarcz sobre a entrada das teorias raciaisno Brasil e as teorias do branqueamento que orientaram as políticas de imigração dogoverno brasileiro e seus reflexos na atualidade.● A entrada das teorias raciais no Brasil(disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=93f7nkbD7tY)● Teorias do branqueamento no passado e no presente(disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=RS7OGC8fZBo)Além da estratégia de imigração, o branqueamento se manifesta, também, narepresentação de pessoas negras como brancas, como é o caso de Machado de Assis(a começar por seu atestado de óbito, que dizia que ele era de “cor branca”). Um dosepisódios mais conhecidos é o que envolve o historiador e crítico literário JoséVeríssimo e o político e jurista Joaquim Nabuco2. Em 1908, logo após a morte de66https://www.youtube.com/watch?v=93f7nkbD7tYhttps://www.youtube.com/watch?v=RS7OGC8fZBoMachado, Veríssimo escreveu um artigo para o Jornal do Comércio elogiandoasqualidades do escritor e o chamando de “mestiço” e “mulato”. O artigo obteve bastanterepercussão e Nabuco lhe deu uma resposta enfática, em uma carta pessoal, afirmandoque Machado era branco.Fonte: https://www.flickr.com/photos/arquivonacionalbrasil/48632106826.67https://www.flickr.com/photos/arquivonacionalbrasil/48632106826Embora isso tenha acontecido no passado, o branqueamento de Machado aindaé visto hoje, como mostra o caso da propaganda da Caixa Econômica Federal exibidoem 2011. O objetivo da publicidade era destacar seu vínculo com a história brasileira,como o primeiro banco do país, apontando que Machado era um de seus clientes. Novídeo, o ator que representa Machado era branco. Após inúmeras críticas, a Caixa pediudesculpas à sociedade e refez o comercial, desta vez com um ator negro, com um tomde pele mais próximo ao que teria o escritor.Assista ao vídeo comercial da Caixa Econômica representando Machado de Assiscomo um homem branco e ao relançamento do mesmo comercial com um ator negrorepresentando o escritor:● Caixa relança propaganda com personagem de Machado de Assis(disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=idaAFaYXnAM)Da mesma forma, ainda é relativamente comum ver materiais didáticos, livros etextos na internet retratando Machado como um homem branco. Ao mesmo tempo,poucas pessoas conhecem imagens diferentes desse tipo de representação. Na imagemabaixo, por exemplo, vemos um exemplo significativo. A fotografia, sem identificação dedata e autor, foi trazida a público inicialmente pelo biógrafo Raymundo MagalhãesJúnior, em 1957. A imagem mostra um Machado com traços negros e pele escura.68https://www.youtube.com/watch?v=idaAFaYXnAMFonte: Acervo do Museu Nacional de Belas ArtesTendo em vista essa questão das imagens do escritor, em 2019 a FaculdadeZumbi dos Palmares lançou a campanha Machado de Assis Real3, colorindo umaimagem de 1893, disponível abaixo. Para os organizadores da campanha, trata-se deuma “errata histórica feita para impedir que o racismo na literatura seja perpetuado”.Fonte: http://www.machadodeassisreal.com.br/69http://www.machadodeassisreal.com.br/As relações raciais na obra de Machado de AssisAlém do branqueamento do fenótipo de Machado de Assis, há outro de igual oumaior intensidade: o branqueamento de sua atuação política e de sua literatura. Pormuito tempo, o escritor foi visto como alguém que compactuava com as classesdominantes da época, além de não se posicionar contra a escravidão e ignorar arealidade da população negra no Brasil, embora essa lhe tocasse diretamente.No entanto, nas últimas décadas, vem ganhando força uma leitura que considera,entre outras questões, sua condição de homem negro, livre, letrado e politicamenteatuante em uma sociedade escravocrata. O escritor era um homem público e costumavadar seus passos sempre com muita cautela. Assim, Eduardo de Assis Duarte, professorda Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), caracteriza Machado como umescritor que utiliza “estratégias de caramujo”, optando sempre pelo confronto àsescondidas: “Machado nunca opta pelo confronto aberto. Ao contrário, vale-se daironia, do humor, da diversidade de vozes, e de outros artifícios para inscrever seuposicionamento” (DUARTE, 2009, p. 253).Dessa forma, embora não esteja presente em sua obra literária uma vozassumidamente negra (ao contrário de outros escritores negros que foram seuscontemporâneos, como Luiz Gama e Cruz e Sousa), Machado não aderiu ao discurso dabranquitude e não reproduziu a desumanização da população negra que havia naépoca. O autor, assim, rompia o círculo perverso de reprodução de preconceitos emrelação a esse grupo.A literatura de Machado de Assis é conhecida e reconhecida por mergulhar deforma crítica, complexa e aprofundada nas relações sociais do Brasil. E faz isso a partir70de uma perspectiva muito particular, pois sua produção não deixa dúvidas de onde oautor fala: trata-se de um homem negro, de origem pobre e nascido em uma sociedadeescravocrata; e esta condição se manifesta na sua produção literária.Possibilidades de leitura de Machado de Assis na escolaConsiderando a perspectiva que temos explorado até aqui sobre Machado deAssis e tendo em vista que o autor era consciente de seu protagonismo na cultura e nasociedade brasileira, é possível lançar um olhar mais apurado para os seus textos quelevamos para a escola. Geralmente, ao abordar a obra machadiana, fala-se sobre otrabalho com a linguagem, a ironia, o sarcasmo, o cinismo, o humor, a crítica àburguesia, entre outros aspectos.De fato, as características elencadas acima são marcantes em sua obra e, porisso mesmo, são constantemente mobilizadas pelo autor ao abordar a temática racial ecriticar ferozmente a escravidão e a desumanização de pessoas negras. Exemplos dissonão faltam em suas obras literárias.Entre seus romances, podemos destacar: Memorial de Aires (1908), Memóriaspóstumas de Brás Cubas (1880), Iaiá Garcia (1878), Helena (1876) e Ressurreição (1872).Nessas obras, têm lugar os problemas vivenciados pelas pessoas negras e, emboraocupem papéis secundários, elas são representadas com traços de humanidade –diferente de outras obras literárias do período, como dissemos anteriormente.Em seus contos, a condição das pessoas negras é tratada de maneira maisexplícita e são denunciados os horrores da escravidão. São inúmeros os exemplos de71contos que tratam dessa temática, inclusive bastante conhecidos, como “Pai contramãe” (1906), “O caso da vara” (1899), “O Espelho” (1882), “Mariana” (1871) e “Virginius”(1864).Por fim, destacamos que foi na crônica que Machado criticou de maneira maiscontundente a escravidão e a podridão da elite escravista. Vale ressaltar que essestextos eram publicados em grandes jornais, sendo que eles eram o principal meio decomunicação da época e contavam com grande circulação entre a população letrada.Dessa forma, levando em conta os textos indicados acima, é possível desenvolverpropostas de leitura das obras de Machado de Assis que o entendam como um escritornegro que aborda em seus textos as tensões raciais brasileiras e a escravidão.72NOTAS1. Leia a entrevista “Quem é e sobre o que escreve o autor brasileiro”22, com aprofessora Regina Dalcastagnè, sobre um estudo realizado pelo Grupo de Estudoem Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília (UnB) quebusca traçar o perfil do romancista no Brasil.2. Leia o artigo “A Caixa Econômica Federal, a política do branqueamento e apoupança dos escravos”23, de Ana Maria Gonçalves, sobre o episódio envolvendoas personalidades José Veríssimo e Joaquim Nabuco e o processo debranqueamento sofrido pelo escritor Machado de Assis.3. Leia mais acessando a notícia “Campanha recria foto clássica de Machado deAssis e mostra o escritor negro: ‘Racismo escondeu que ele era”24, publicada noPortal Geledés.24 Disponível no linkhttps://www.geledes.org.br/campanha-recria-foto-classica-de-machado-de-assis-e-mostra-escritor-negro-racismo-escondeu-quem-ele-era/.23 Disponível no linkhttps://www.geledes.org.br/caixa-economica-federal-politica-branqueamento-e-poupanca-dos-escravos-por-ana-maria-goncalves-2/.22 Disponível no link https://revistacult.uol.com.br/home/quem-e-e-sobre-o-que-escreve-o-autor-brasileiro/.73https://revistacult.uol.com.br/home/quem-e-e-sobre-o-que-escreve-o-autor-brasileiro/https://revistacult.uol.com.br/home/quem-e-e-sobre-o-que-escreve-o-autor-brasileiro/https://www.geledes.org.br/caixa-economica-federal-politica-branqueamento-e-poupanca-dos-escravos-por-ana-maria-goncalves-2/https://www.geledes.org.br/caixa-economica-federal-politica-branqueamento-e-poupanca-dos-escravos-por-ana-maria-goncalves-2/https://www.geledes.org.br/campanha-recria-foto-classica-de-machado-de-assis-e-mostra-escritor-negro-racismo-escondeu-quem-ele-era/https://www.geledes.org.br/campanha-recria-foto-classica-de-machado-de-assis-e-mostra-escritor-negro-racismo-escondeu-quem-ele-era/https://www.geledes.org.br/campanha-recria-foto-classica-de-machado-de-assis-e-mostra-escritor-negro-racismo-escondeu-quem-ele-era/https://www.geledes.org.br/campanha-recria-foto-classica-de-machado-de-assis-e-mostra-escritor-negro-racismo-escondeu-quem-ele-era/https://www.geledes.org.br/caixa-economica-federal-politica-branqueamento-e-poupanca-dos-escravos-por-ana-maria-goncalves-2/https://www.geledes.org.br/caixa-economica-federal-politica-branqueamento-e-poupanca-dos-escravos-por-ana-maria-goncalves-2/https://revistacult.uol.com.br/home/quem-e-e-sobre-o-que-escreve-o-autor-brasileiro/Referências bibliográficasBENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e branquitude no Brasil. In: Psicologiasocial do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis:Vozes, 2014.CUTI. Literatura Negro-Brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010.DUARTE, Eduardo de Assis. Estratégias de Caramujo. In: Machado de Assis:afro-descendente - escritos de caramujo [antologia]. Rio de Janeiro / Belo Horizonte:Pallas / Crisálida, 2009.OLOPES, Elisângela Aparecida. Machado de Assis. In: Literatura afro-brasileira: 100autores do século XVIII ao XX. Rio de Janeiro: Pallas, p. 61-65, 2014.SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racialno Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.Sobre o autorEsdras Soares é bacharel, licenciado e mestre em Letras pela Universidade de SãoPaulo (USP), com pesquisa sobre literatura e educação das relações étnico-raciais.Contato: esdras.soa@gmail.com.74mailto:esdras.soa@gmail.com2.7De ex-escravizado e autodidata a “autor”: a produçãoliterária de Luiz GamaLigia Fonseca FerreiraNão borres um livro,Tão belo e tão fin[o;]Não sejas pateta,Sandeu e mofino.Ciências e letrasNão são para ti[;]Pretinho da Cost[aNão é gente aqui.No álbum do meu amigo J. A. da Silva Sobral (PTB, 1859, 1861)“Fiz versos.”Carta a Lúcio de Mendonça, 1880.Desejamos aqui chamar a atenção para um autor e uma obra única, em mais deum sentido, rica fonte de estudos ou de simples fruição. Como as leitoras e leitorespoderão constatar, é difícil ler os escritos de Luiz Gama, tanto sua obra poética comojornalística, e sair incólume à sua visão sobre a sociedade e traços da mentalidadebrasileira que ainda hoje nos governam.75Conforme ele escreveu na célebre carta ao amigo Lúcio de Mendonça em 25 dejulho 1880, narrando-lhe momentos importantes de sua história de vida, Luiz Gamacomeçou tardiamente seu letramento, e assim que resgatou sua liberdade, buscou uma“segunda” liberdade: a liberdade do conhecimento, da conquista da palavra. Jamaisfrequentou escolas e “academias” (referindo-se à “Academia de Direito de São Paulo”,uma das únicas instituições de ensino superior no Brasil). Orgulhava-se de ser umautodidata, confessava-se um leitor voraz25. E essa transformação é um dentre tantosfatos extraordinários que marcaram a vida de um homem negro, um ex-escravizado quese tornaria um autor. Aqui o sentido desta palavra é mais amplo do que lhe emprestamacepções presentes no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa: não se trata apenasde um sinônimo de “escritor”, não se limita apenas à “pessoa que produz ou compõeobra literária, artística ou científica”. A noção de “autor” é aqui compreendida comoaquele que introduz uma enunciação em primeira pessoa, o que permitirá a Luiz Gamaintroduzir a voz negra na literatura brasileira, em pleno período romântico, cerca detrinta anos antes da Abolição da Escravidão, quando o negro começava a despontarcomo personagem na literatura produzida por autores brancos26.Clique aqui27 para conferir a carta de Luiz Gama ao seu amigo e escritor Lúcio deMendonça, que lhe pediu que enviasse informações sobre os fatos de sua vida.27 Disponível no link https://correio.ims.com.br/carta/lances-doridos/.26 Para aprofundar essa questão, ver FERREIRA, Ligia Fonseca. “Luiz Gama, autor, leitor, editor.Revisitando as Primeiras Trovas Burlescas de Getulino” (1859-1861), op. cit.25 Ver o levantamento das referências literárias (autores, títulos de obras) mencionadas pelo autor nasPrimeiras Trovas Burlescas de Getulino em FERREIRA, Ligia Fonseca, “Luiz Gama, autor, leitor, editor.Revisitando as Primeiras Trovas Burlescas de Getulino” (1859-1861). In: Estudos Avançados 33 (90),2019, pp. 109-135. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/161284.76https://correio.ims.com.br/carta/lances-doridos/https://correio.ims.com.br/carta/lances-doridos/https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/161284Já que tratamos aqui de um ex-escravizado autodidata, é importante lembrarque, praticamente até a Abolição da Escravidão em 1888, os escravizados e os libertosnão tinham o direito de frequentar escolas. Veja-se o que dizia a Lei da Educação n. 1de 1837:“Art. 1o - Fica proibido desde já receberem-se nas aulas públicas pessoas quenão sejam livres”.Essa lei sofreria adaptações em várias regiões do país. No Rio de Janeiro, sededa capital do Império, o decreto nº 15, de 1839, sobre Instrução Primária naquelaprovíncia, estipulava, em seu artigo terceiro que:“são proibidos de frequentar as Escolas Públicas: 1º Todas as pessoas quepadecerem moléstias contagiosas; 2º Os escravizados, e os pretos Africanos,ainda que sejam livres ou libertos.Logo, ensinar um escravizado a ler ou a escrever significava igualmentetransgredir as regras estabelecidas, e poucos ousavam fazê-lo. Privado doconhecimento, o escravizado estava condenado ao silêncio.Nascido livre, Luiz Gama tornou-se escravizado aos dez anos de idade, emcircunstância dramática entre tantas outras que marcam sua tumultuada, porémascensional, existência. A partir dos dezessete anos, graças à “transgressão” de umestudante residente na casa de seu senhor que o ensina a ler e a escrever, Luiz Gamaempreende sua prodigiosa conquista do saber e da palavra que lhe devolvem aliberdade e constroem o improvável destino de um ex-escravizado no Segundo Reinado:77o destino de um homem “letrado” cuja voz se fez ouvir na sua cidade, na sua provínciae na sua nação.O ex-escravizado iria romper outras barreiras, encarnando um contra-exemplodas crenças pseudocientíficas de seu tempo. Segundo as teorias raciais propagadasdesde o final do século XVIII, a raça negra era considerada a mais inferior. Assim,acreditava-se que os negros não eram capazes de compreender ou produzir as belascoisas do espírito. Prova de que os negros eram “naturalmente inferiores aos brancos”,apoiava-se, segundo o filósofo e historiador britânico David Hume (1711-1776), naconstatação de não haver entre os povos de origem africana “nem artes, nem ciências”.Luiz Gama tinha pleno conhecimento desta ideologia que, vinda de longe, pairava econtinuaria pairando ao longo do século XIX, mas não pararia por aí. Ao contrário.A escolha da epígrafe deste texto não é fortuita:Ciências e letrasNão são para ti[;]Pretinho da Cost[a]Não é gente aqui.Desmentindo o filósofo iluminista, o tom ligeiro adotado por Gama, trinta anosantes da Abolição, expõe os preconceitos de longa data que atingem milhares deafricanos e afrodescendentes sobre os quais pesa o estigma da cor e da escravidão,feridas abertas na pele de outros autores negros. Assim, com sua obra literária, o“Orfeu de Carapinha” adquire um passaporte para o mundo das “letras” e das“ciências”. Sua voz antecipa Cruz e Sousa e Lima Barreto e abre o veio da literaturanegra brasileira.78✵✵✵Em 1859, ou seja, doze anos depois de iniciar sua instrução, LuizGama publicava a primeira edição de seu livro único – PrimeirasTrovas Burlescas de Getulino28 na provinciana São Paulo, que nãocontava mais do que vinte mil almas. É importante compreendermoso contexto em que ocorrem as publicações do primeiro negro autor,figura até então inexistente no panorama da literatura brasileira.Segundo o primeirocenso realizado no Brasil, São Paulo possuía 30mil habitantes em 1872, 64 mil em 1890; São Paulo, portanto, alémde ser 8 a 10 vezes menor que o Rio de Janeiro que contava 274 mil habitantes em 1872e 523 mil em 1890 não possuía sistema e instituições literárias que assegurassemprojeção comparável a escritores e artistas como no Rio de Janeiro. Recorde-se aindaque o Brasil era terra de poucos “letrados”, ou seja de pessoas aptas a ler e escrever.Mais de quinze anos depois da publicação das Primeiras Trovas Burlescas de Getulino,cerca de 78% da população brasileira era analfabeta29.Em meio à produção literária paulista e brasileira do século XIX, aqueles versosiriam se destacar por seu caráter inédito em vários aspectos. Contrariamente ao que seanuncia no poema de abertura “Prótase” (“Se de um quadrado/ Fizer um ovo/ Nisso douprovas/ De escritor novo”), a novidade da publicação não provinha da capacidade dopoeta em transmutar figuras geométricas. Luiz Gama mostrava-se plenamenteconsciente da estranheza que haveria de causar e enganaria a muitos com seu falso29 Fonte: https://sumarios.org/artigo/o-analfabetismo-no-brasil-li%C3%A7%C3%B5es-da-hist%C3%B3ria28 Disponível no link https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4905.79https://sumarios.org/artigo/o-analfabetismo-no-brasil-li%C3%A7%C3%B5es-da-hist%C3%B3riahttps://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4905retraimento: (No meu cantinho,/ Encolhidinho,/ Mansinho e quedo,/ Banindo o medo,/ Dotorpe mundo,/ (..)/ O que estou vendo/ Vou descrevendo). Numa província de poucosleitores, raros escritores, um número ínfimo de tipografias e livrarias, o aparecimentodaquele autor sui generis, era no mínimo curioso.Naquele contexto particular, em pleno Brasil escravocrata e período romântico, oex-escravizado autodidata Luiz Gama fincou uma voz inaugural na literaturabrasileira, a voz do negro “autor” que surge como uma novidade em si e introduz umolhar diferenciado sobre os paradoxos políticos, éticos e raciais da sociedadeimperial, dando à luz uma obra voltada essencialmente para a sátira política e decostumes.Desde o título de sua obra, Primeiras Trovas Burlescas deGetulino30, Luiz Gama posicionou-se em relação a sua identidadeétnico-racial. A escolha do pseudônimo não era aleatória:“Getulino” deriva de “Getúlia”, território da África do Nortecorrespondente à parte da atual Argélia, no passado chamadaNumídia, e da Mauritânia. Essa região fora ocupada por um povonômade, os “getulos”, durante a Antiguidade e a ocupação romanada África. Vê-se, pois, que Luiz Gama de cara posiciona-se como um “autor” de origemafricana, sabendo que adentrava o círculo restrito dos letrados, privilégio exclusivo debrancos.30 Disponível no link https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4906.80https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4906A afirmação “negro sou”, como se verá, perpassa boa parte dos poemas,constituindo-se em locus enunciativo. Em seu poema mais célebre, “Quem sou eu?”,também conhecido como “Bodarrada” (não se sabe por que nem desde quando assimbatizado), o enunciador escarnece da brancura ostentada por mestiços de toda espéciequando ascendem socialmente. Em tom provocador, dá de ombros ao que para muitosseria um insulto (“Se negro sou, ou sou bode/ Pouco importa. O que isto pode?”); em vezde infamante, a palavra “negro” ou “bode” (aplicada aos mestiços de pele mais escura)apenas retratava a realidade do país. O autor afirma, assim, sua atrevida determinaçãode retirar as máscaras de indivíduos afrodescendentes que se encontravam em todasas camadas sociais.Esta temática retorna numa estrofe de outro poema satírico – “Sortimento degorras para a gente do grande tom”-, no qual se alude a um corpo social irrigado pelosangue africano, semelhante ao próprio corpo de um enunciador implacável diante dos“mulatos falsários” que renegam, desprezam e recalcam sua ascendência africana. Umaatitude contrária caracterizava Luiz Gama que, além de assumir-se negro, não dá ascostas à solidariedade racial. O poeta se apresenta como um “Orfeu de carapinha” quesubstitui sem cerimônia os símbolos da poesia ocidental pelos equivalentes de origemafricana. Mas se Luiz Gama pretende cumprir a promessa de carnavalizar a tudo e atodos, o mesmo se estenderia ao “Africano fidalgote” ou ao Orfeu por ele reinventado.Seu desejo é atrair a admiração e a adesão dos seus « patrícios » a fim de que tambémeles sejam protagonistas da festa, ingrediente indispensável da sua poética, como sepode ler na estrofe que encerra, compondo uma cena teatral, o poema “Lá vai verso”.81Note-se, porém, que as marcas de oralidade, o emprego de africanismos e deelementos hauridos na cultura popular não retiram da criação de Luiz Gama seu carátererudito e a oportunidade de mostrar que domina o conhecimento de seus confrades.Embora reduzida31, a produção poética de Luiz Gama, apresenta-se variada doponto de vista do gênero (sátira política e de costumes, paródias herói-cômicas,bestialógico, poemas líricos), do ponto de vista do estilo (influência da sátira portuguesados séculos XVIII e XIX, bem como da poesia romântica brasileira), e do conjuntotemático (corrupção política, hipocrisia dos mulatos, preconceito racial, anticlericalismo,crítica aos “doutores” e à venalidade do judiciário, caricatura de tipos sociais, e emmenor grau, o amor e a liberdade do escravizado). Luiz Gama talvez não se contentasseem divertir e fazer sorrir seus leitores, pois adota, na esteira da sátira latina, a posturacorretiva, expressa na máxima: “castigat ridendo mores” (corrige os costumes rindo).A voz original de Luiz Gama também se faria ouvir em duas odes à mulher negra– “A cativa” (PTB, 1861) e “Meus amores”, publicada em 1865 no semanário Diabo Coxosob o pseudônimo de “Getulino”, ambas inspiradas em versos de Camões. Luiz Gamaconfere à mulher negra um status poético inédito, que talvez tenha passadodespercebido na época. Graças a esses dois poemas, Luiz Gama comparece na históriada literatura brasileira como o primeiro poeta a cantar a beleza palpitante da mulhernegra e a paixão que ela inspira.Muitos pintaram erroneamente Luiz Gama como inimigo do mundo dos brancos;trata-se de uma formulação generalista e exagerada, mas que merece ser relativizada eobservada mais de perto. Na verdade, o vate negro não investe contra os « brancos »31 No total, compõe-se de 52 poemas, 12 dos quais publicados em jornais paulistanos nos quaiscolaborou.82indistintamente, mas sobretudo contra os representantes de um regime político, amonarquia. A sociedade imperial é atravessada, a seus olhos, por males congênitos. Aavidez pelo dinheiro e a falta de escrúpulos alimentam a corrupção de políticos e juízesacomodados à impunidade (“Ladrão que muito furta é protegido”). Atualíssimo, o poema“Sortimento de Gorras para a gente do grande tom” faz a radiografia de um corpo socialenfermo do qual também não escapam médicos charlatães, nobres de pacotilha,“doutores” ignorantes e venais, militares e “vadios empregados” que embolsampolpudos salários “que ao povo, sem sentir, são arrancados”.Neste breve texto, esperamos ter demonstrado a necessidade de seler/conhecer/estudar/ensinar a obra de Luiz Gama. Mais do que a figura estática do“Herói da Abolição”, seus escritos fazem ecoar a voz de um pensador negro cuja visão,de grande atualidade, engrandece nossas Letras, nossa História, nossa Educação, nossacidadania.Referências bibliográficasBANDEIRA, Manuel. Antologia dos poetas brasileiros da fase romântica. Rio de Janeiro:Imprensa Nacional (Ministério da Educação), 1937.Com a palavra Luiz Gama. Poemas, artigos, cartas, máximas. Organização, introdução,ensaios e notas Ligia Fonseca Ferreira. São Paulo: Imprensa Oficial, 2011, 2018.CUTI, Luis Silva. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010.DUARTE, Eduardo Assis. Literatura afro-brasileira, abordagens na sala de aula. RiodeJaneiro: Palas, 2014 ( 2. ed. 2019).FERREIRA, Ligia Fonseca. “Luiz Gama, autor, leitor, editor. Revisitando as PrimeirasTrovas Burlescas de Getulino” (1859-1861). In: Estudos Avançados 33 (90), 2019, pp.83109-135.Disponível em : https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/161284GAMA, Luiz. Primeiras Trovas Burlescas de Getulino. [1ª edição] São Paulo: TypographiaDous de Dezembro de Antonio Louzada Antunes, 1859.Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4905_________. Primeiras Trovas Burlescas de Getulino. [2ª edição] Rio de Janeiro: Typ. dePinheiro & Co, 1861.Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4906_________.Primeiras Trovas Burlescas & outros poemas. Organização, introdução,notas Ligia Fonseca Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2000.Lições de resistência. Artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio deJaneiro. São Paulo : Edições do SESC, 2020.Literatura e afrodescendência no Brasil. Antologia crítica. Organização Eduardo AssisDuarte, Maria Nazaré Fonseca. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2021.Vídeos1. Vida e obra de Luiz Gama. Programa “Literatura Fundamental 62”. Entrevistacom Profa. Ligia Fonseca Ferreira, TV UNIVESP.Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WqSuNcU2jdA2. Farofa Crítica: Ligia Ferreira fala sobre aspectos inéditos da obra poética deLuiz Gama. Entrevista ao Prof. Dennis de Oliveira (ECA-USP), 2º. sem 2021.Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sNMUzDaAvTs84https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/161284https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4905https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4906https://www.youtube.com/watch?v=WqSuNcU2jdAhttps://www.youtube.com/watch?v=sNMUzDaAvTs3. Luiz Gama: abolicionista, republicano, homem da imprensa (por ocasião doLançamento do livro Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa deSão Paulo e do Rio de Janeiro (Ed. Do SESC, 2020). Programa Canal Livre,BandNews, 2021.Disponível em:https://www.facebook.com/watch/live/?ref=watch_permalink&v=226707332917785Sobre a autoraLigia Fonseca Ferreira é professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).Doutora em Letras pela Universidade de Paris 3 – Sorbonne, com tese sobre a vida e aobra de Luiz Gama. Organizou a edição da obra poética integral Primeiras TrovasBurlescas & outros poemas de Luiz Gama (2000) e a antologia Com a palavra LuizGama. Poemas, artigos, cartas, máximas (2011, 2018). Em 2020, lançou Lições deresistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro (Ediçõesdo SESC).85https://www.facebook.com/watch/live/?ref=watch_permalink&v=226707332917785https://www.facebook.com/watch/live/?ref=watch_permalink&v=2267073329177852.8Literatura, afeto e comprometimento social:a importância da obra de Conceição Evaristo naeducaçãoOluwa SeyiDe forma lenta, mas, felizmente, gradual, a educação vem deixando de ser umespaço que favorece a manutenção do privilégio e se tornando um território quepromove a igualdade e o respeito às diversidades. Esse cenário motivador, ainda emprocesso, é fruto de duas grandes forças que se alimentam e se impulsionam: a primeiradelas é a persistência de diversos movimentos sociais (femininos, negros, LGBTQIA+,etc), os quais enfatizam há muito o papel fundamental da escola na edificação defuturos mais justos; a segunda delas é o posicionamento produtivo dos profissionais daeducação (de dentro e fora da sala de aula) que não se esquivam do dever (e do direito)de apresentar perspectivas plurais sobre a sociedade e as pessoas que a constituem.Na medida em que o comprometimento com o bem-estar social é incorporado àidentidade docente e assumido, então, como fundamental para a formação e o exercíciode um bom profissional da educação, ruem de forma mais grave as estruturas racistas,machistas, homofóbicas e classistas que a escola e a sociedade reforçam. No entanto,construir e conservar o engajamento em questões sociais nem sempre é fácil,sobretudo quando levamos em consideração as demandas específicas do cotidiano86escolar e a necessidade de não ignorar aquilo que o currículo prevê. Este breve texto,porém, tem como propósito trazer algumas reflexões e dicas, de ordem teórico-prática,para auxiliar na apresentação de conteúdos produtivos sobre questões sociais, porémque não percam de vista as bases curriculares.A escritora mineira Conceição Evaristo é muito conhecida por sua produçãoliterária e por conseguir mover os afetos de seus leitores a partir do que ela mesmaintitula de escrevivência. Trata-se, sem dúvida, de ficção, mas esta tem como base aexperiência pessoal, histórica e ancestral de Evaristo como mulher, negra, brasileira,filha, mãe, pessoa que viveu a privação material. E professora. Os relatos de Conceiçãonão apresentam o que ela de fato experienciou, mas trazem tudo que ela poderia tervivido; trazem o que mulheres, homens e crianças em condições identitárias e sociaissemelhantes às dela vivem (ou podem ainda viver).Desta maneira, permitir que os(as) estudantes tenham acesso às obras deEvaristo pode ser uma prática que congrega dois aspectos caros: o incentivo à leituraliterária, prevista pelo currículo escolar e enfatizada pela BNCC (Base Nacional ComumCurricular), e a necessária discussão sobre o passado e os rumos de nossa sociedade.Assim, além da importante abordagem de textos de uma mulher negra apresentando,denunciando e celebrando, através da linguagem literária, as experiências de suacomunidade, o estudo de tais obras possibilita que tragamos, como referido acima,questões sociais à centralidade das discussões em aula, porém elas não nos chegamsem propósito, mas ocasionadas pelo trato artístico de experiências que, por tantotempo na tradição literária do nosso país, foram encaradas de forma redutora.Redutora porque o nosso cânone literário pouco trata as dimensões afetiva,imaginativa, familiar, racional e autônoma de pessoas negras. São muitos os87pesquisadores(as) e professores(as) (Domício Proença, Eduardo de Assis Duarte, LuizFernando de França, Mariza Corrêa, Núbia Hanciau, Regina Dalcastangè, Roger Bastide,Teófilo Queiróz Júnior, etc) que se dedicaram a reconhecer e sublinhar os estereótiposque aprisionaram pessoas negras em versões parciais de suas possibilidades. Nessesentido, como bem reflete a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, “oproblema com estereótipos não é que sejam mentira, mas que são incompletos. Elesfazem com que uma história se torne a única história”.E é na contramão dessa história única, da versão que vilaniza, apequena e tornapessoas negras sinônimos de trajetórias de tristeza, privação e solidão, que surge aobra de Conceição. Surge, no entanto, irmanada a tantos(as) outros(as) escritores(as)negros(as). Surge dando mais corpo e volume às vozes que, desde Luiz Gama e MariaFirmina dos Reis, já investem em dar outras cores à literatura brasileira: é oportunolembrar que Evaristo publicou seus textos literários pela primeira vez nos CadernosNegros, preciosa publicação que, no auge de seus quarenta anos de existência, é umespaço que divulga e enaltece a presença negra em nossas letras nacionais.Assim, possibilitando que, de forma ascendente, uma perspectiva mais complexasobre a experiência de mais da metade da população brasileira seja abordada naeducação, a partir do PNLD (Programa Nacional do Livro e do Material Didático) de2018, três livros de Evaristo tornaram-se leituras indicadas para estudantes de EnsinoMédio em todas as escolas públicas do Brasil: os romances Ponciá Vicêncio e Becos damemória e a coletânea de contos Olhos d’água. O manual direcionado ao(à) professor(a)acerca desse último título, por exemplo, divide-se entre reflexão e discussão dosproblemas sociais que atingem a comunidade negra e atividades voltadas para a88apresentação de aspectos caros da cultura negra, talvez desconhecidos pelos(as)estudantes.Motivada por tais sugestões, mas pensando a importância deatingir também estudantes mais jovens, trago como sugestãode exercício a construção de uma árvore genealógica afetiva.Leitores(as) costumazes da obra de Evaristo percebem que aquestão da ancestralidade e da relação com o aspecto femininoda família é um lugar comum na escrita evaristiana: dois dostextos mais conhecidos de Conceição, "Vozes-mulheres" e "Olhos d’água", centram-seem linhas genealógicas femininas. Isso ocorre porque, para além do valor que Evaristoenxerga na relação familiar e na presença da mulher negra, a impossibilidade derefazer a linha genealógica é uma realidade dolorida para pessoas negras da diáspora,já que, em decorrência da escravatura, famílias foram separadas, nomes modificados,alguns sobrenomes esquecidos e outros impostos. Assim, essa atividade - a qual podeser tópico de uma roda de conversa descontraída, motivo de um projeto bimestral queenvolva entrevistas com familiares, disparadora da leitura ou parte da etapa deverificação de aproveitamento -, baseada em obras de Conceição, tem como objetivochamar a atenção para como essa produção não se restringe a formatos familiaresespecíficos. Durante a reflexão sobre a árvore genealógica, a(o) docente pode proporaos(às) estudantes que esbocem, até onde puderem, sua linha genealógica, mas quenão se esqueçam daqueles que são família por escolha, não necessariamente pelosangue: família estendida, família afetiva, família de santo, redes de apoio, primas deconsideração, amigos de anos, avós do coração, irmãos de criação…89Dessa forma, implicar os(as) estudantes naquilo que leem e estudam,fazê-los(las) perceber que suas histórias pessoais também importam durante suaformação escolar e como sujeito, é um rumo bastante importante e que, apesar deaparentemente simples, pode ser capaz de despertar maior autoconfiança,independência e comprometimento. É, obviamente, importantíssimo tratar problemas defora da escola, assuntos vitais para a humanidade, porém, no microcosmo da sala deaula, no universo particular de cada vida jovem, há uma profusão de questões, tambémde ordem social, que podem passar insuspeitas, mas que exigem atenção. Afetuosa esincera atenção.Sobre a autoraOluwa Seyi Salles Bento é doutoranda e mestre em Estudos Comparados de Literaturasde Língua Portuguesa (USP) e graduada em Letras pela mesma universidade. Ministracursos e oficinas sobre literatura. Escreve artigos, ensaios, prosa e poesia. É uma dasautoras dos livros 20 Marias em um grito (Editora Ser Poeta, 2021), Do que nos sobra daguerra e outros versos pretos (Editora Ipê Amarelo, 2021), Escritas Femininas emprimeira pessoa (Editora Oralituras, 2020), Ana Maria Gonçalves: cartografia crítica(Edições Carolina, 2020) e Caderno Ema Klabin (Fundação Ema Klabin, 2019).902.9Maria Firmina dos Reis - inaugurando a literatura deautoria feminina negraLuciana Martins DiogoMaria Firmina dos Reis nasceu em 11 de março de 1822, em São Luís, Maranhão.Filha de Leonor Felipa dos Reis, uma mulher mestiça alforriada, e de João Pedro Esteves,um homem branco de posses que foi sócio de Caetano José Teixeira, ex-proprietário deLeonor, mãe de Firmina.Esta autora representa um caso interessante para sepensar as condições de constituição de uma carreiraliterária para uma mulher no contexto brasileiro do séculoXIX: escritora que viveu no interior do Maranhão32 edistante da corte; filha de uma ex-escravizada;autodidata que se tornou professora aos 25 anos33 e seaposentou nessa ocupação após trinta e quatro anos demagistério, criando, ainda depois de aposentada, em1881, a primeira aula mista maranhense, na qual ensinava meninos e meninas na mesma33 Disponível no link http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=749982&pagfis=624.32 Maria Firmina dos Reis viveu a maior parte de sua vida na Vila de Guimarães, MA.91http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=749982&pagfis=624http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=749982&pagfis=624classe34; viveu solteira até o final da vida, embora, tendo sido mãe de vários filhosadotivos.Úrsula é sua obra de estreia, aos 37 anos. Um romance que já estava pronto, oubastante adiantado, em 185735, mas que começou a ser vendido somente em agosto de1860, embora estampe o ano de 1859 na folha de rosto. Durante o século XIX, entre osanos de 1867 e 1875, esse romance foi mencionado algumas vezes na imprensamaranhense: em 1867, no Semanário Maranhense; em 1871, no A Esperança; e em 1875,no Publicador Maranhense. Fora da província do Maranhão, o livro foi mencionado noperiódico O Espírito-Santense (ES), de 4 de novembro de 1871; e, finalmente, foi citadono Dicionário Bibliográfico Brasileiro, de Sacramento Blake, em 1900. A partir disso, oromance e sua autora permaneceram silenciados até a segunda metade do século XX.A recuperação da produção literária de Firmina ocorreu a partir de 1973, com aspesquisas de Nascimento Morais Filho36, o que tornou possível reintroduzi-la noscírculos de leitores e de pesquisas literárias, e também, resgatar e publicar parte deseus manuscritos que, entretanto, encontram-se hoje sem localização. Toda a pesquisade Morais Filho sobre a autora foi reunida no livro Maria Firmina: fragmento de umavida, publicado em 1975.Úrsula foi assinado por Maria Firmina dos Reis sob o pseudônimo “UmaMaranhense”, e talvez, isso tenha contribuído para que seu nome fosse apagadodurante muito tempo da historiografia, mas não da história. Desse modo, atualmente,Maria Firmina dos Reis tem sido reconhecida por marcar a história literária brasileira36 Escritor, poeta, ensaísta, pesquisador e folclorista maranhense.35 DIOGO, Luciana Martins. “A primeira resenha de Úrsula na imprensa maranhense“. Afluente: Revistade Letras e Linguística, v. 3, n. 8, mai/ago 2018. Disponível em:http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/afluente/article/view/9845. Acesso em outubro de2024.34 MORAIS FILHO, Nascimento. Maria Firmina - Fragmentos de uma vida. São Luiz: COCSN, 1975, n.p.92http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/afluente/article/view/9845http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/afluente/article/view/9845como a primeira mulher negra a publicar um romance no Brasil, sendo ele tambémconsiderado o primeiro romance antiescravista de autoria feminina de toda a línguaportuguesa!37Entretanto, à época, Firmina foi bem mais conhecida por seus contemporâneospor sua produção poética: foram quarenta e dois poemas avulsos publicados entre 1860e 1908, em jornais e periódicos como Pacotilha, Eco da Juventude, SemanárioMaranhense, O Federalista, A Verdadeira Marmota e Jardim das Maranhenses,participando também da antologia poética Parnaso maranhense (1861) e estandopresente no Almanaque de Lembranças Brasileiras (1863). Além dessa produção avulsa,Firmina também publicou o livro de poesias Cantos à Beira-mar, em 1871.Em 1901, um poema de Maria Firmina de título e texto desconhecidos38 foipublicado na edição de número 3 do periódico O 17 de Dezembro, do Pará. Trata-se doúnico poema de Maria Firmina dos Reis publicado fora do Maranhão naquele período39.Já em 1914, no Rio de Janeiro, o nome da autora apareceu citado no artigo "PoetisasBrasileiras", publicado na revista A Faceira, n. 36, escrito por Carmen Unzer, escritorado início do século XX40. Isso mostra que o nome de Firmina também repercutiu paraalém do seu estado – inclusive na capital do país –, no período em que ainda estavaviva.40 Na Fundação Biblioteca Nacional estão conservados sete anos da revista, encadernados em seisvolumes.http://bndigital.bn.gov.br/dossies/periodicos-literatura/titulos-periodicos-literatura/a-faceira-culto-a-mulher/?fbclid=IwAR0TbzcuYmwib3zW9_tzUyus-Ha8SqkkdSVKecZ3vUnFAczpufJVjqRsR0s.39 Diário do Maranhão, 11/1/1901, ano XXXII, número 8211, última coluna. A Fundação CulturaldoEstado do Pará possui o microfilme do periódico “O 17 de Dezembro”, ano de 1901, mas o conteúdoainda não está digitalizado, nem a Fundação oferece o serviço de solicitação de cópias, em seu site.38 Disponível no link https://memoria.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=720011&pagfis=32887.37 Eduardo de Assis Duarte:https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,no-centenario-de-morte-primeira-autora-negra-do-brasil-ganha-reedicao,70001909178. Acesso em outubro de 2024.93http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=720011&pagfis=32887http://bndigital.bn.gov.br/dossies/periodicos-literatura/titulos-periodicos-literatura/a-faceira-culto-a-mulher/?fbclid=IwAR0TbzcuYmwib3zW9_tzUyus-Ha8SqkkdSVKecZ3vUnFAczpufJVjqRsR0shttp://bndigital.bn.gov.br/dossies/periodicos-literatura/titulos-periodicos-literatura/a-faceira-culto-a-mulher/?fbclid=IwAR0TbzcuYmwib3zW9_tzUyus-Ha8SqkkdSVKecZ3vUnFAczpufJVjqRsR0shttps://memoria.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=720011&pagfis=32887https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,no-centenario-de-morte-primeira-autora-negra-do-brasil-ganha-reedicao,70001909178https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,no-centenario-de-morte-primeira-autora-negra-do-brasil-ganha-reedicao,70001909178Firmina nos deixou ainda: Gupeva (1861),uma novela indianista; A Escrava (1887), umconto abolicionista; dez jogos de palavras(enigmas e charadas41) e atribui-se a elatambém sete composições musicais42 e umdiário mantido entre os anos de 1853 e 1903, publicado postumamente. O diário deFirmina, atualmente, é desconhecido do grande público e da crítica literária, nãohavendo estudos aprofundados sobre ele na literatura especializada, mesmo sendo umdos únicos diários femininos brasileiros do século XIX publicados43. A partir dasindicações desse diário, sabemos que Firmina lia em francês e que foi leitora deGonçalves Dias, Almeida Garrett e Lord Byron.Estudiosos da obra firminiana44 têm encontrado produções inéditas da escritoraem jornais oitocentistas, bem como documentos históricos oficiais que permitem lançarluz a dados biográficos que possibilitam desfazer equívocos relativos à sua história, suatrajetória, bem como à sua imagem, que foi erroneamente retratada como de umamulher branca45.45 Novos documentos: https://mariafirmina.org.br/novos-dados-biograficos-e-novos-documentos/.Produções inéditas:https://mariafirmina.org.br/novos-dados-biograficos-documentos-e-poemas-ineditos-de-maria-firmina-do-reis/. Novas menções em jornais da época:https://mariafirmina.org.br/novos-dados-firmina-nos-jornais-do-xix/. Imagem equivocada de Firmina:44 Por exemplo, Dilercy Aragão Adler, Jéssica Catharine Barbosa de Carvalho e Sérgio BarcellosXimenes.43 Ver BRITO, Ingrid Zacarelli - Cadernos íntimos diários publicados: um estudo das práticas da escrita dediários, no âmbito das práticas sociais disseminadas. Dissertação apresentada ao Instituto deBiociências do Campus de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, como partedos requisitos para obtenção do título de Mestre Educação. Linha de pesquisa: Linguagem –Experiência, Rio Claro, 2011, p. 32. Vale ressaltar que Álbum (1975), o diário de Maria Firmina, nãoaparece relacionado no levantamento da pesquisadora Ingrid Zacarelli Brito.42 Disponível no link https://mariafirmina.org.br/partituras/.41 Disponível no link https://mariafirmina.org.br/charadas/.94https://mariafirmina.org.br/charadas/https://mariafirmina.org.br/partituras/https://mariafirmina.org.br/novos-dados-biograficos-e-novos-documentos/https://mariafirmina.org.br/novos-dados-biograficos-documentos-e-poemas-ineditos-de-maria-firmina-do-reis/https://mariafirmina.org.br/novos-dados-biograficos-documentos-e-poemas-ineditos-de-maria-firmina-do-reis/https://mariafirmina.org.br/novos-dados-firmina-nos-jornais-do-xix/https://mariafirmina.org.br/partituras/https://mariafirmina.org.br/charadas/De tal modo, recentemente, o nome e a obra de Maria Firmina dos Reis vêmrecebendo reconhecimento crescente e isso pode ser atestado observando o interessedo mercado editorial em novas edições do romance Úrsula. Há uma década, tínhamosapenas seis edições da obra: 1859, 1975, 1988, 2004, 2008 e 2009. Elas seguiramesgotadas até o centenário de sua morte. Entre 2017 e 2020, entretanto, o romanceÚrsula recebeu dezesseis novas edições impressas. Quatro em 2017; nove em 2018;duas em 2019 e, em 2020, a primeira edição de capa dura. Além disso, há previsão delançamento da primeira tradução de Úrsula para o inglês, trabalho que vem sendorealizado pela professora e pesquisadora Cristina Ferreira Pinto-Bailey.Também desde 2018, o romance de Firmina consta em lista de leiturasobrigatórias de alguns vestibulares, como os da Universidade Federal do Rio Grande doSul (UFRGS) e o da Universidade de Brasília (UnB), já tendo estado na lista de obras deleitura obrigatória da Universidade Federal do Piauí, em 2009.Maria Firmina dos Reis foi uma mulher negra intelectual pioneira do século XIX, esem dúvida, uma intérprete do Brasil. Ela faleceu em 11 de outubro de 1917, aos 95 anos,dos quais quarenta foram dedicados ao ensino e sessenta à literatura.Sua obraO trabalho realizado por Maria Firmina dos Reis no sentido de constituir em seustextos literários personagens negras (escravos ou forros) a partir da representação dehttps://mariafirmina.org.br/imagens-e-representacoes-a-imagem-equivocada-de-firmina/. Obranqueamento da imagem de Firmina foi sendo construído ao longo desses anos com base emequívocos: a pintura que ficou exposta na Câmara dos Vereadores de Guimarães, por exemplo, trazia aimagem de Maria Benedita Bormann (1853-1895), uma escritora branca, gaúcha, que acreditaram serFirmina. Essa imagem foi massivamente difundida, e este equívoco infelizmente ainda hoje ocorre emmídias e materiais diversos.95https://mariafirmina.org.br/imagens-e-representacoes-a-imagem-equivocada-de-firmina/uma subjetividade fundada na experiência da liberdade, talvez seja um dos grandeslegados de sua obra.Outro legado importante de sua produção literária tem a ver, inegavelmente, comseus questionamentos com relação ao lugar e ao papel da mulher na sociedade, poispara muitos, Maria Firmina parece estar à frente de seu tempo falando não só danecessidade de igualdade entre os seres humanos, como também da forma com quealguns homens tratavam as mulheres. Assim, Firmina é uma das inauguradoras de umadicção antipatriarcal na literatura brasileira.Sua visão de mundo – fundada na experiência articulada de gênero e raça –permitiu-lhe construir um ponto de vista diferenciado e inovador, substanciado comouma voz dissonante em seu tempo, que buscava romanticamente revisar o mundo, amulher, o negro, o índio.Úrsula (1859)Esta foi a primeira obra publicada por Maria Firmina dosReis e trata do triângulo amoroso formado pela jovem Úrsula, seuamado Tancredo e por seu tio, o Comendador Fernando P., umsenhor cruel que se impõe entre eles pela força e violência.Composto por vinte capítulos acrescidos de epílogo e prólogo (que discute a condiçãoda mulher autora), possui três deles dedicados especialmente a personagens negras: ocapítulo IX, intitulado “A preta Susana”; o capítulo XVII, “Túlio” e “A dedicação”, título docapítulo XVIII, que realiza a apresentação do escravo Antero. Neles, Firmina inaugura noromance brasileiro do século XIX a narrativa em primeira pessoa de personagens96negras – Susana, Túlio e Antero são, assim, as primeiras personagens literárias negrasbrasileiras constituídas e representadas como sujeitos de suas trajetórias.Acessar livro:https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=129431Gupeva – Romance BrasiliensePublicado originalmente em versão incompleta, no periódicosemanal O Jardim das Maranhenses, entre outubro de 1861 ejaneiro de 1862, em São Luís, essa novela trata da história do índioGupeva e sua filha, Épica.8.3 Integridade, de Geni Guimarães………………………….…………………………………………………………….5398.4 Dia de graça, de Lilia Guerra………………………….…………………………………………………………………….5418.5 Não as matem, de Lima Barreto………………………..………………………………………………………………5498.6 Poemas selecionados de Luiz Gama……………………………………………………………………………….5528.7 Missa do galo, de Machado de Assis……………………………………………………………………………...5628.8 O relógio de ouro, de Machado de Assis………………………………………………………………….……5728.9 Sobre escrever, de Ricardo Aleixo……………………………………………………………………………………5838.10 Diga-me alguma coisa, pelo amor de Deus!, de Sacolinha…………………………………5868.11 A gênese maraguá e a origem do mundo, de Yaguarê Yamã…………………………….5898.12 Ka’apora’rãga e as mães da mata, de Yaguarê Yamã………………………………………..…5968.13 Meus olhos bonitos, de Yaguarê Yamã…………………………………………………………………………59959. ANEXOS……………………………………………………………………………………..…………………………………………6049.1 A literatura, os jovens e a escola: caminhos para a leitura literária e aformação de leitores, de Esdras Soares e Lara Rocha……………………………………………………6049.2 Ensinar leitura lendo, de Magda Soares………………………………………………………………………...6159.3 Diário de leituras: caminhos de mediação do texto literário no cotidianoescolar, de Maria Coelho Araripe de P. Gomes…………………………………………………………………..629EXPEDIENTE ………………………………………………………………………..………………………………………………….64061. IntroduçãoPara pensar e praticar uma educação antirracista no Brasil é preciso, em umprimeiro momento, reconhecer as desigualdades históricas presentes em nossasociedade e compreender como elas se manifestam, por exemplo, em projetospedagógicos que abordam conteúdos e conhecimentos forjados em uma visão demundo uniforme, homogênea. No bojo deste entendimento está o compromisso deconstruir paradigmas para o ensino e aprendizagem nas escolas que acolham asdiferentes epistemologias, os outros saberes e as contribuições culturais elaboradas apartir da diversidade de povos e etnias que compõem o nosso tecido social.Como fruto das lutas promovidas pelos movimentos negro e indígena, tivemos, noâmbito das políticas públicas, dois importantes marcos para a concretização de umaeducação para as relações étnico-raciais: a Lei nº 10.639, de janeiro de 2003, quetornou obrigatória a inclusão da História e Cultura Afro-Brasileira e Africanas noscurrículos da educação básica, com o intuito de dar visibilidade à história daspopulações negras no país, destacando suas tradições e contribuições para a formaçãoda sociedade brasileira; e a Lei 11.645, de março de 2008, que ampliou essa perspectivatornando obrigatória também a inclusão da História e Cultura Indígenas.Apesar dos avanços trazidos por estas normativas, as escolas brasileiras aindaenfrentam desafios para implementar uma concepção de educação que valorize ecelebre as narrativas plurais presentes em nossa formação e constituição social. Umdos fatores que contribuem para que isso ocorra é a existência de lacunas significativasnos processos formativos de professoras e professores.7Neste sentido, a presença de pensamentos, saberes, ciências e conhecimentosdiversos produzidos por personalidades, cientistas, pesquisadoras(es), autoras eautores negras(os) e indígenas deve compor o planejamento docente de forma integrale independe de um calendário de eventos circunscritos aos meses de abril e novembro.E pensando justamente nas premissas de celebrar, memorar e repertoriar,reunimos neste especial conteúdos que abordam a história, a literatura e as culturasnegras e indígenas para que estas temáticas possam integrar, de forma contínua, osprogramas de ensino de Língua Portuguesa e Literatura de professoras e professoresnas salas de aula brasileiras.82. Artigos reflexivos sobre o ensino de história e culturaafro-brasileira e africanas na escolaNesta seção você encontra publicações com reflexões que dialogam com a Lei nº10.639/03. Em “Educação para as relações étnico-raciais-ERER: o que nos dizem os 20anos da Lei 10.639?”, Gina Vieira faz considerações sobre os avanços e desafios dosmais de 20 anos desta lei.Em “Feminismo negro – para um novo marco civilizatório”, Djamila Ribeiro pontuaa importância e centralidade do feminismo negro para o debate político e apresentauma análise sobre a opressão da mulher negra a partir do recorte dainterseccionalidade.Sobre a importância da leitura literária comprometida com práticasantirracistas, leia os artigos “Por que trabalhar literatura afro-brasileira na escola?”, deLara Rocha; “A contação de história para o empoderamento da criança negra e aliteratura negro-brasileira do encantamento infantil e juvenil: mudanças necessárias deparadigmas”, de Kiusam de Oliveira; “Unindo o discurso à prática: não basta serantirracista. É preciso ler o que as autoras e autores negros escrevem”, da educadorasocial Bel Santos Mayer; e “A importância de celebrar o 20 de novembro – Dia daConsciência Negra”, de Washington Góes.Reflita também sobre as relações entre as concepções de educação integral eas questões de raça nos artigos: “As quizambas da Educação Integral: uma perspectivaa partir do amor e da descolonização”, de Lara Rocha; “Educação Integral e ensino de9Língua Portuguesa: diálogos necessários”, de Gina Vieira Ponte; e “Catucá: de passagempor uma comunidade educadora”, de Fernanda Mendes.Por fim, amplie seu repertório literário e confira dicas e sugestões para levarimportantes autoras e autores negras(os) da literatura brasileira para a sala de aulacom a seguinte seleção de artigos: “Machado de Assis, um escritor negro”, de EsdrasSoares; “De ex-escravizado e autodidata a “autor”: a produção literária de Luiz Gama”,de Lígia Fonseca Ferreira; “Literatura, afeto e comprometimento social: a importância daobra de Conceição Evaristo na educação”, de Oluwa Seyi; “Maria Firmina dos Reis -inaugurando a literatura de autoria feminina negra”, de Luciana Martins Diogo; “Quartode despejo como diário de Carolina Maria de Jesus: armadilhas e possibilidades em salade aula”, de Fernanda Sousa; “É Educação quando morre o coração?”, de Lara Rocha,sobre o conto “Metamorfose” de Geni Guimarães; e “Nei Lopes e José Craveirinha:poemas de dormir e de acordar amor”, uma análise literária da poeta e editoraindependente Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota).102.1Educação para as relações étnico-raciais-ERER: o quenos dizem os 20 anos da Lei 10.639?Gina Vieira PonteQuando a Lei 10.639 foi aprovada eu estava atuando como professora havia 11anos. Desde então, fui acompanhando, a partir do chão da escola, os efeitos destalegislação nos projetos político-pedagógicos. Principalmente, fui percebendo o esforçovaloroso de muitas educadoras e educadores em cumprir a lei. E o meu objetivo nestecafezinho que tomamos aqui, na Sala das professoras, é propor que façamos juntas(os)um balanço do que foram estas duas décadas de aplicação de uma lei tão importantepara a educação brasileira e que levou tanto tempo para ser aprovada.Neste diálogo, convido cada uma(um) de vocês a pensarem em como sentiram-sequando se viram diante da tarefa de levar para as aulas a cultura e a história africana eafro-brasileira, como determina a lei. Eu me recordo de ser tomada por um sentimentode muita insegurança, porque até aquele momento, não tinha feito nenhuma formaçãona área, não me lembro sequer que tivesse havido alguma oferta. Depois da aprovaçãoda lei eu fiquei sabendo de uma especialização voltado à temática, mas não conseguiser selecionada porque as vagas eram muito restritas. Na época eu não conseguiaelaborar muito bem o porquê de tanta insegurança, mas hoje compreendo que a origemdela estava no fato de que todas(os) nós, professoras e professores da Educação11Básica, recebemos uma educação centrada na cultura europeia e ocidental. Desde asséries iniciais, passando pela graduação, até a formação continuada eu tinha sidocolocada em contato exclusivamente com o pensamento de intelectuaisA ação acontece na Bahia, mas discutedesencontros, incesto e miscigenação entre franceses e Indígenas.Acesse as publicações originais: https://mariafirmina.org.br/primeiras-publicacoes-2/Cantos à beira-mar (poesia)Publicado originalmente em 1871, é dedicado à memória damãe de Maria Firmina dos Reis e conta com cinquenta e seispoesias. O mar e a praia são presenças marcantes, a exaltação daterra e nacionalismo, bem como homenagens a pessoas ilustres,são também temas recorrentes. Firmina ainda usa da críticavelada contra a opressão patriarcal, denunciando o papel social destinado às mulheresno período, que as distanciava do ambiente público.97https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=129431https://mariafirmina.org.br/primeiras-publicacoes-2/Acesse a obra: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/35999A Escrava (1887)É uma narrativa curta que possui por volta de vinte páginas,publicada originalmente em 1887, na Revista Maranhense,periódico que circulou no Maranhão e com o qual Firminacolaborou em seu segundo e terceiro números. O conto se passaem um salão com pessoas “da sociedade” discutindo diversostemas até que se inicia um debate sobre o “elemento servil”. Nestemomento, a personagem uma senhora entra em cena, toma a palavra e passa acentralizar a discussão, tornando-se a narradora da trágica história da personagemJoana, uma escrava em fuga.Acesse a obra: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/35999Álbum (1975)Esse foi o título que o diário de Maria Firmina dos Reis recebeu ao ser publicado em1975, por Nascimento Morais Filho, em Maria Firmina: fragmentos de uma vida. Écomposto por fragmentos esparsos que vão de 9 de janeiro de 1853 a 1 de abril de1903, redigidos, portanto, entre os 30 e 81 anos de idade de Firmina. Editado em trintapáginas, que exibem breves notícias e saltos de quatro anos ou mais. Apresenta formaentrecortada, descontínua, mas não parece apresentar páginas perdidas, apenas com aordem das páginas 159 e 165 trocadas, e uma entrada em 1910, que é visivelmente umerro de impressão.98https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/35999https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/35999Acesse a obra: https://mariafirmina.org.br/edicoes-2/Clique aqui46 para visitar a seção “Na escola” do portal Maria Firmina dos Reis e vejacomo a obra da autora é trabalhada em escolas e como leitura obrigatória devestibulares.Sobre a autoraLuciana Martins Diogo é Bacharela em Ciências Sociais (FFLCH-USP), Mestra emEstudos Brasileiros (IEB-USP) e Doutoranda em Literatura Brasileira (FFLCH-USP). Écriadora e editora do portal Memorial de Maria Firmina dos Reis47 e editora da revistaFirminas - pensamento, estética e escrita48.48 Disponível no link https://mariafirmina.org.br/revista-firminas-n-1/.47 Disponível no link https://mariafirmina.org.br/.46 Disponível no link https://mariafirmina.org.br/categoria/firmina-na-escola/.99https://mariafirmina.org.br/edicoes-2/https://mariafirmina.org.br/categoria/firmina-na-escola/https://mariafirmina.org.br/https://mariafirmina.org.br/revista-firminas-n-1/https://mariafirmina.org.br/revista-firminas-n-1/https://mariafirmina.org.br/https://mariafirmina.org.br/categoria/firmina-na-escola/2.10Quarto de despejo como diário de Carolina Maria deJesus: armadilhas e possibilidades em sala de aulaFernanda SousaA escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977) tem, desde o seu centenário, em2014, ganhado cada vez mais relevância nacional. De homenagens, pesquisasacadêmicas, novas edições de suas obras à inclusão na lista de livros obrigatórios dovestibular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e ao título de DoutoraHonoris pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 2020, Carolina está,enfim, obtendo o reconhecimento como escritora que tanto almejou em vida. Entretanto,apesar de ter várias publicações, como Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada(1961), Pedaços da Fome (1963), Provérbios (1963), Diário de Bitita (1986) e escritoromances, peças, poesias, Carolina ainda é muito conhecida somente pela sua obra demaior sucesso, Quarto de despejo: diário de uma favelada, publicado em 1960.Disponível em muitas escolas em todo o país, pois é parte do Programa Nacionaldo Livro e do Material Didático (PNLD) de 2018, Quarto de despejo é, na maioria dasvezes, a porta de entrada para muitos professores e alunos no que diz respeito à vida eà obra de Carolina Maria de Jesus. Nesse sentido, proponho neste breve texto algumasreflexões que visam alertar para armadilhas marcadas por simplificações de sua vida e100estereótipos racistas e, ao mesmo tempo, apresentar algumas possibilidadespedagógicas que contornem essas emboscadas em relação a Quarto de Despejo.Primeiramente, em termos biográficos, é importante considerar a trajetória deCarolina Maria de Jesus em seu todo: nascida em Sacramento em 1914 – duas décadase meia após a abolição da escravidão –, cidade rural do interior de Minas Gerais, ondeconseguiu aprender a ler e a escrever, Carolina migrou para São Paulo em 1937 emorou, junto com seus três filhos, João José, José Carlos e Vera Eunice na favela doCanindé, às margens do Rio Tietê, entre 1947 e agosto de 1960, período em quetrabalhou como catadora de papel. Após o êxito de Quarto de despejo, Carolinamudou-se para Osasco e, depois, para o bairro de Santana, onde viveu até 1969,quando passou a residir em um sítio em Parelheiros, extremo sul da cidade de SãoPaulo, local onde faleceu em 1977.Mais do que esmiuçar dados de sua vida apartados de sua obra, essasinformações permitem evitar uma armadilha comum: a favela como dimensãototalizante da experiência de Carolina. Se em seus 64 anos de vida Carolina morouapenas por quase 14 na favela do Canindé, pode ela ser descrita como escritora“favelada”? Será a favela o único espaço que informa sua escrita? E seus trânsitos pelacidade de São Paulo? E sua experiência como menina e jovem negra no interior deMinas Gerais? Como os outros lugares que viveu influenciaram sua escrita após osucesso de Quarto de Despejo? Será que ela escreveu outros livros? Quais? Essas sãoperguntas que podem ser feitas aos alunos, orientando-os a imaginarem e, depois, abuscarem respostas para essas questões, possibilitando um conhecimento mais amplosobre Carolina.101À luz disso, é possível suscitar uma reflexão sobre onde se encontra mais umaarmadilha quanto ao primeiro livro de Carolina Maria de Jesus: o título. Editado pelojornalista Audálio Dantas, seu diário foi publicado sob o título Quarto de despejo: diáriode uma favelada. Há, então, a circunscrição de um gênero autobiográfico, como o diário,a um espaço metaforizado pela autora – a favela – como quarto de despejo e, aomesmo tempo, de sua autoria a um lugar social determinado, o de “favelada”, como seseu discurso fosse representativo da imagem construída do “favelado”. Tanto o títuloquanto o subtítulo operam, desse modo, um deslocamento simbólico, em que o espaçoparece se sobrepor ao sujeito, como se o diário de uma favelada fosse um diário sobreo quarto de despejo, isto é, sobre a favela, confinando a obra a uma referência ao real,especialmente a “problemas sociais”, que obscurece o caráter intimista do gênero,atrelado, no caso, à subjetividade de Carolina.Por isso, é possível interrogar os alunos: o que move a escrita de um diário? Oque eles imaginam encontrar quando leem um diário? Se eles já escreveram ouescrevem diários, sobre o que eles escreviam ou escrevem? A partir das respostas,outro questionamento pode ser lançado: por que diário de uma favelada e não diário deCarolina Maria de Jesus? O diário não está relacionado à produção de uma narrativa desi, escrita por alguém com nome e sobrenome? Nesse sentido, um exercício pode serfeito, fazendo um quadro na lousa para anotar as respostas: que expectativas de leituratemos quandotomamos Quarto de despejo como diário de uma favelada e quandotomamos o livro como diário de Carolina Maria de Jesus? Paralelamente, considerando aforça cada vez maior das imagens no mundo de hoje, é interessante exibir para osalunos as três capas das três edições existentes da obra até hoje, estimulando uma102reflexão sobre como as capas materializam ou não sentidos suscitados pelo título dolivro:A capa da edição de 2004, em que Carolina aparece, junto aos seus três filhos,com uma roupa velha e suja e uma postura resignada, alimenta uma outra armadilha: afixação de uma imagem de miserabilidade e resignação em torno das mulheres negras.Apesar de Carolina escrever em diferentes momentos do diário que não gosta de andarsuja e que “gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido” (JESUS,2004, p. 28), além de sobre sua luta diária pela sobrevivência e de sua revolta diantedas condições de vida, a capa produz uma imagem que não é coerente com o modocomo Carolina se vê e age, mas que é coerente com um imaginário racista, que projetamulheres negras em posição de precariedade absoluta e passividade.Assim, juntamente com o título, as capas também podem contribuir para oesvaziamento de outras dimensões da vida de Carolina que aparecem no diário, paraalém da fome e da pobreza, seja por meio de um desenho que fixa uma condiçãomiserável, seja por meio de desenhos supostamente neutros do espaço da favela. Emrazão disso, uma atividade em parceria com o professor ou professora de artes seriabem-vinda após a leitura do livro: a criação em grupo de outras capas e títulos para o103Quarto de despejo: diário de uma favelada, que poderia culminar, por exemplo, em umaexposição na escola.Ao evitar essas armadilhas no início do trabalho com o livro em sala de aula,abre-se espaço para uma Carolina Maria de Jesus que excede adjetivações como“favelada” – importa destacar que, à época, ainda não havia movimentos ancorados emuma afirmação política e cultural de sujeitos que moram nas favelas, de modo que nãohavia nenhuma carga afirmativa nessa palavra –, “catadora de papel” e/ou“semianalfabeta”. O seu próprio ato de escrita de um diário se configura como umarecusa do lugar de favelada, isto é, o de “projeto de gente humana” (p. 14), do trabalhocomo definição de sua existência e da baixa instrução formal como interdito à escritaliterária.Promover a leitura de Quarto de despejo em sala de aula como diário de Carolinade Maria de Jesus e não como diário de uma favelada nos permite, então, enxergarmuito mais “uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. Eque deita com lápis e papel debaixo do travesseiro” (p. 44) e não apenas a mulher quese sente “um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo” (p. 33). Afinal,nesse quarto de despejo Carolina também cria um “ambiente de fantasia” e imaginaque reside “num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol”, pois “é preciso criar esteambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela”.Nesse sentido, entre tantas adjetivações que a marcam, penso que uma palavradeve sempre guiar qualquer proposta pedagógica que envolva sua obra, sobretudoQuarto de Despejo: a escritora Carolina Maria de Jesus.104Referências das três ediçõesJESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo:Francisco Alves, 2004.JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática,2004.JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática,2019.Sobre a autoraFernanda Sousa é doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP),professora de língua portuguesa e revisora de textos. E-mail para contato:fernandasilva.esousa@gmail.com.105mailto:fernandasilva.esousa@gmail.com2.11Nei Lopes e José Craveirinha: poemas de dormir e deacordar amorDinha (Maria Nilda de Carvalho Mota)O carioca Nei Lopes é considerado um intelectual negro multifacetado: grandeescritor, compositor e cantor, além de advogado, sambista e carnavalesco, éamplamente reconhecido por seus estudos no campo das culturas africanas, seja nadiáspora, seja dentro de África. Sua primeira publicação data de 1981 e, desde então,desenvolveu uma sólida carreira que lhe rendeu prêmios e homenagens, como o PrêmioJabuti em 2016, na categoria não-ficção com Dicionário da História Social do Samba e otítulo de Doutor Honoris Causa em ao menos cinco universidades brasileiras.No poema História para ninar Cassul-Buanga, Nei Lopes, com seu sujeito poéticoassumidamente negro, se vale de versos livres, mas não completamente brancos, paracontar a história de um povo em seu forçado processo diaspórico. Para isso, fazreferência a um episódio do passado, descreve o presente e, profeticamente, fazanúncio de um futuro em que crianças negras poderão viver, dormir e sonhar sem opeso da exploração capitalista, escravista e racializada.Assim como Nei Lopes, o poeta moçambicano José Craveirinha, em Poema dofuturo cidadão, também faz uso do texto literário para delimitar seu pertencimento a umpovo e, do mesmo modo, organiza os tempos para construir um lugar no futuro – longe106das mazelas capitalistas, coloniais e racistas. Indicado por várias vezes ao Nobel deLiteratura, em 1997, Craveirinha foi ganhador do Prêmio Camões e é consideradomundialmente, e por seus compatriotas, como “o pai da literatura moçambicana”.Tanto Nei Lopes quanto José Craveirinha são grandes artistas negros eintelectuais premiados e suas obras dialogam em vários aspectos: desde as similitudesbiográficas, passando pela valorização da negritude e dos povos negros, até, comoveremos, os aspectos estéticos dos belíssimos poemas História para ninarCassul-Buanga e Poema do futuro cidadão, de autoria de Nei Lopes e de Craveirinha,respectivamente.Antes de prosseguir com a análise dos poemas, é importante demarcarmosalguns conceitos, como Diáspora Negra e Povo Negro, assim como relembrar brevementecomo se deu o processo colonizatório no continente africano e em território brasileiro.O termo Diáspora Negra refere-se ao processo de dispersão de pessoas negras,ocorrido de forma involuntária, a partir do século XV, por meio de sequestros, tráficohumano e escravização.O conceito de Povo Negro, por sua vez, trata-se de uma generalizaçãoatualmente usada para delimitar o conjunto de pessoas negras e afrodescendentes (noBrasil, também chamadas de pretas e pardas, de acordo com o Instituto Brasileiro deGeografia e Estatísticas - IBGE). Equivale, portanto, ao conjunto de pessoas oriundas dediferentes localidades e culturas, mas que mantém em comum traços negróides e raízesno continente africano.Quando falamos de Povo Negro na Diáspora, ou simplesmente “Diáspora Negra”,estamos nos referindo, portanto, ao forçado processo de deslocamento de pessoasoriundas da chamada África Negra – geograficamente posicionada ao sul do Deserto do107Saara – e a suas(seus) descendentes. Essa população, que no Brasil chega a ser amaior do mundo fora do continente africano, encontra-se espalhada por todo o globo,embora concentre-se fortemente em países cujo processo de colonização valeu-se demão de obra escravizada para suster-se economicamente, como nosso próprio país,Estados Unidos da América, Cuba, Haiti e a maior parte da América Latina.História para ninar Cassul-Buanga é, nesse sentido, um poema narrativo imbuídoda trajetória do povo negro na diáspora: formado por quarenta e dois versos livresdivididos em seis estrofes, o poeta logra imprimir neles, na sua concretude formal, aliberdade que foi historicamente negada a esse povo. Para isso, o poeta recorre aestratégias que remontam às tradições orais, à poesia moderna contemporânea e aoque Bloch (2005) chama de “sonho diurno”. A oralidade está expressa no tom deconversa, na sugestão de interlocução entre o sujeito poético e ummenino,Cassul-Buanga, que, segundo o título do poema, ouve a contação da história.Os versos que abrem cada uma das estrofes, por sua vez, trazem marcaçõestemporais por meio de expressões verbais e nominais que denotam a passagem dotempo. É o caso das expressões destacadas em negrito, posicionadas cada qual noprimeiro verso das cinco primeiras estrofes:“Um dia, Cassul-Buanga, alguns chegaram: (...) E fomos. (...) Chegamos: (...) Masvivemos, Cassul. E cantamos um blues!”Todas essas estrofes remontam ao passado – e isso fica evidente pelaconjugação dos verbos, no pretérito, e pela referência à chegada de povos europeus àÁfrica Negra, ao tráfico humano que se sucedeu, à exploração da vida e da mão de obraescravizada, que foi, por séculos, motor da economia brasileira. O texto tambémexplicita aspectos bonitos do povo negro, como a arte produzida por essa população –108a qual se configura como uma das formas de resistência que pessoas provenientes deÁfrica e suas(seus) descendentes encontraram para se manterem vivas(os) eressignificar suas existências.Essa arte, concretizada no poema de Nei Lopes, o qual deve ser declamado aosom de um instrumento musical, a marimba, nos surge como guia para um novo tempo.A última estrofe, por exemplo, muda o tempo verbal e histórico, trazendo Cassul-Buangae nós, leitoras e leitores, ao presente. Essa alteração que se dá no campo gramaticalinterfere no campo do nosso imaginário e nos obriga a olhar para o futuro:Hoje, Cassul, nossas mulheres – os negros ventres de veludo – Manufaturam, depaina, de faina Os travesseiros Onde nossos filhos, Meninos como você, Cassul-Buanga,Hão de sonhar um sonho tão bonito... Porque Zâmbi mandou. E está escrito.O futuro que Nei Lopes nos obriga a olhar é profético (“Porque Zâmbi mandou. Eestá escrito”) e nele está embutido o conceito de “sonho diurno” de Bloch (2005), ou“sonho que se sonha acordado”. Trata-se da antecipação do possível, com vistas aatender aos desejos e necessidades legítimas e imediatas. A liberdade do povo negro,um lugar de paz é o sonho diurno do poeta, e, nesse sentido, o poema de Nei Lopesaproxima-se ao de José Craveirinha, poeta moçambicano cuja obra testemunha,amorosamente, a luta pela libertação de seu povo contra a colonização portuguesa.Como em História para ninar Cassul-Buanga, o poema de José Craveirinhaapresenta elementos relacionados à valorização do povo negro (nesse caso, o que semanteve dentro do continente) ao trazer à tona um sujeito que se coletiviza ao seautodeclarar “homem qualquer/ cidadão de uma nação que ainda não existe”. Essa“nação que ainda não existe” é Moçambique, que, na década de 1960, encontrava-sesob domínio português. A história do Brasil e de Moçambique são ambas atravessadas109pela metrópole portuguesa, pois, grosso modo, Portugal estabeleceu relaçõescomerciais e relativamente amigáveis com os povos tradicionais e reinos africanosdurante os séculos que durou o tráfico negreiro e o sistema monárquico e escravocratabrasileiro. Após 1888, com a abolição da escravatura, e 1889, com a Proclamação daRepública do Brasil, houve uma amplificação do processo de dominação sobre oschamados “Territórios Ultramarinos”, que eram, na prática, colônias portuguesas nocontinente africano. Embora a nação moçambicana ainda não existisse, ela já faziaparte dos sonhos diurnos de José Craveirinha e de pelo menos um grupo de intelectuaisafricanas e africanos que tiveram a oportunidade de se reunir em um estabelecimentochamado Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, assim como existe na imaginaçãodo poeta Nei Lopes o lugar bom que Zâmbi, o rei, mandou e que “está escrito”.A Casa dos Estudantes era uma espécie de república estudantil, criada com ointuito de abrigar, apoiar e controlar estudantes vindos dos “territórios ultramarinosportugueses”. Do encontro de intelectuais de origem africana nasceram grandeslideranças, as quais lutaram efetivamente contra a dominação portuguesa por meio daluta armada, da arte e da política – como é o caso de Craveirinha, um grande poeta quepassou alguns anos de sua vida preso, justamente por seu compromisso político com aliberdade do seu país.Ambos os poemas subvertem o tempo, fazendo do passado/memória e dofuturo/sonho diurno, formas de resistência. No poema de José Craveirinha, há umasobreposição do espaço-tempo, um paradoxo temporal em que o sujeito poético já é,no presente, cidadão de um país que ainda não existe e em que esse mesmo sujeitoapela para a memória coletiva dos povos que coabitam o mesmo território parasentir-se pertencente a eles, como um só povo, uma nova nação. No poema de Nei110Lopes, há a criação de um lugar bom que ainda não foi concretizado, mas que já existeno plano do imaginário e do desejo.No caso de Poema do futuro cidadão, são apenas dezenove versos divididos emquatro estrofes e que giram em torno de três ideias principais: uma pessoa qualquerque, no presente, ama um país/nação do futuro, formando a tríade “indivíduo/amor/nação”. Dos dezenove, quatro versos são variações do mesmo tema (naçãofutura), repetindo, inclusive, a sintaxe em três deles: “de uma nação/país que ainda nãoexiste” (versos 1, 2, 14 e 19). Outros seis versos são centrados na explicitação de umafigura, um homem anônimo que pode ter nascido em qualquer lugar, carrega sofrimentocomum a outras pessoas e que, por essas características, se irmana a outras cidadãs ecidadãos de uma nação que ainda virá (versos 4, 5, 6, 13, 17 e 18). Por fim, o sentimentode amor fraterno dá o tom dos versos que restam (7, 8, 9, 10, 11, 12, 15 e 16).Entre o indivíduo, o amor e a pátria figura um som característico da línguaportuguesa que, após ser instrumento de dominação colonial, passa ao status deespólio de guerra e unifica essas três categorias por meio da aproximação sonora dostermos cidadão/nação/não/irmão/ mãos/coração/são. Como em História para ninarCassul-Buanga, o futuro se apresenta e é pela via do amor que ele se concretizará,apesar do presente opressivo. Se concretizará porque há um passado e um presente deresistência e porque o Rei Zumbi (Zâmbi) disse. O futuro será bonito para meninas emeninos como é para o menino Cassul-Buanga e também será para pessoas comuns deMoçambique, para negras e negros em África, no Brasil e no mundo.O futuro será bonito porque canções e poemas cantam por isso. Será de pazporque é para isso que se luta. Será de amor porque os poetas disseram e, portanto,está escrito.111Referências bibliográficasBLOCH, Ernst. O princípio esperança. Tradução de Nélio Schneider. EDUERJ: Rio deJaneiro, Contraponto, 2005, v.1.CRAVEIRINHA, José. Obra Poética. Direção de Cultura Universidade Eduardo Mondlane:Maputo, 2002.CRAVEIRINHA, José. “Poema do futuro cidadão”.MOTA, Maria Nilda de C. João Cabral de Melo Neto e José Craveirinha: Literatura contra aDesumanização. 2017. 162f. Tese (Doutorado) – Curso de Letras, Faculdade de Filosofia,Letras e Ciências Humanas da Universidade, Universidade de São Paulo, São Paulo,2017. Disponível em:. Acesso em: 25 out. 2024Sobre a autoraDinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, editora independente, mestra e doutoraem Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa e Pós Doutora emLiteratura e Sociedade pela Universidade de São Paulo.FonteArtigo publicado originalmente na Revista Na Ponta do Lápis (ano XVIII – número 39,novembro de 2022) – Sonhar um sonho tão bonito: como repensar as questõesétnico-raciais na educação.112https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8156/tde-10052018-105858/publico/2017_MariaNildaDeCarvalhoMota_VOrig.pdfhttps://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8156/tde-10052018-105858/publico/2017_MariaNildaDeCarvalhoMota_VOrig.pdf2.12É educação quando morre o coração?LaraRochaImagine o quão desafiador deve ser reviver casos e causos, dores e amores, e, apartir disso, construir literatura? Geni Guimarães, no livro Leite do Peito, publicado em198849, parte de fatos para criar ficção, numa narrativa com 11 contos, que por searticularem linearmente, podem ser lidos como capítulos de uma mesma trama.O olhar de criança da autora, reconstituído na obra na vivência das personagens,traz a dor, a ternura e a inconformação que permeiam diariamente as salas de aula.Suas palavras fazem que nossas angústias também se derramem sobre o texto ecaminhem com a trajetória da protagonista, que se torna professora.Aqui, refletiremos sobre o conto “Metamorfose”, publicado na Página Literáriadesta edição da revista Na Ponta do Lápis. Entre a casa e a escola, acompanhamosdiferentes narrativas em torno da história da população negra, e como cada uma afetaa personagem principal, também chamada Geni, mostrando que, frequentemente, osprocessos educativos não só desconsideram as conquistas da negritude, mas insistemem reafirmar o olhar depreciativo. A protagonista, que até então havia tido contato comas histórias orais de Vó Rosária sobre as lutas contra a escravidão, conhecerá na escola49 Em 1989, Leite do Peito é adaptado para o que veio a ser a obra ‘A cor da ternura’, vencedora dosprêmios Jabuti e Adolfo Aisen.113a “versão oficial” e a narrativa da professora terá forte impacto sobre seucomportamento e, principalmente, sobre seu olhar para si mesma.Ao buscar compreender um pouco mais sobre as dinâmicas escolares envolvendoestudantes negras/os, deparei-me com uma pesquisa intrigante: em 2020, o professorSherick Hughes e sua equipe da Universidade da Carolina do Norte realizaram umestudo sobre a interação de docentes com crianças negras, intitulado Precisão doreconhecimento de emoções racializadas e viés de raiva nos rostos das crianças50(tradução livre). Eles analisaram como 178 professores/as, principalmente mulheresbrancas, interpretavam expressões faciais que indicavam diferentes emoções. Elesdescobriram que as expressões de alunas/os negras/os eram frequentemente malinterpretadas — 36% a mais do que as de estudantes brancas/os. Surpreendentemente,esse índice aumenta para 74% quando se trata de meninas negras. Além disso, as/osprofessoras/es que tendiam a tratar melhor as/os alunas/os brancas/os foram os quemais erraram na interpretação das emoções das crianças negras.A lei 10.639/03 estabelece o ensino obrigatório de história e cultura africana eafro-brasileira nas escolas, não apenas para proporcionar o acesso a diferentesculturas e contribuições intelectuais, mas também para reconhecer a humanidadehistoricamente negada a esses grupos. Mais do que um conteúdo curricular – ou o quese ensina – refletir sobre a abordagem desses temas – ou seja, como se ensina – écrucial.Em certa passagem do conto, acompanhamos o 13 de maio e o encaminhamentodado pela professora à data. Geni, a partir das histórias contadas por Vó Rosária, uma50 A pesquisa atualmente só está disponível em inglês. Disponível em: Racialized emotion recognitionaccuracy and anger bias of children’s faces.114https://psycnet.apa.org/record/2020-45460-001https://psycnet.apa.org/record/2020-45460-001amiga da família, havia escrito um poema para Princesa Isabel e mostrado para aprofessora, que lhe prometera que seria lido diante de todos na festinha emhomenagem à princesa. Chegado o grande dia, a professora fala sobre o período daescravidão e da abolição a partir de uma perspectiva salvacionista, em que a PrincesaIsabel seria a única responsável e a população negra era ignorante e pouco envolvidacom o processo. Diferente das histórias que ouvira em casa, sua ancestralidade já nãoinspirava orgulho.Podemos imaginar que a professora do conto acredite que está contemplando ocurrículo ao apresentar uma história da população negra às/aos alunas/os. Contudo,como educadoras/es, a nossa abordagem e o nosso olhar para as crianças, assim comoa escolha das fontes e exemplos, deve refletir um compromisso ético em promoverrelações raciais positivas e assertivas.A história da personagem Vó Rosária, embora não esteja presente nos livrosdidáticos, traz muito da realidade e nos permite conhecer desafios, estratégias de luta eresistência, assim como a sensibilidade, a inteligência e a beleza da população negra.Vó Rosária é uma figura ancestral que exerce papel central na comunidade. Com suasabedoria, ela se revela uma guardiã das tradições e da cultura local. Sua presençaafetuosa, assim como seu conhecimento profundo das ervas medicinais e da história deseu povo, proporcionam suporte emocional e espiritual. A partir de suas narrativas,ainda que envolvendo duros episódios históricos, reconhecemos não só as mazelas,mas a humanidade dos sujeitos negros.115“Quis sumir, evaporar, não pude” ou acolher para educarAo trabalhar em sala de aula com textos sensíveis como este, é crucial provocarrelações com a narrativa que permitam uma compreensão ampla da obra, evitando umaleitura que enxerga apenas a violência como tema.Isso significa que, para além das cenas de sofrimento, é importante, ao longo daleitura, estimular o olhar atento para os diferentes elementos que compõem a literatura.Não esqueçamos que, embora a literatura afro-brasileira seja perpassada por aspectossociológicos, antropológicos, históricos, ela é, acima de tudo, arte.Obras como Leite do Peito nos oferecem, por exemplo, inúmeras referências docotidiano, que permitem nos reconhecermos ali, seja a partir da linguagem ou deelementos apresentados, como a comida, a exemplo da mandiúva; o espaço, como oterreiro da casa onde ficavam as galinhas; ou mesmo práticas presentes em nossoimaginário, como ajoelhar no milho. Assim, em sala de aula a turma aciona referênciasem comum entre si e a obra. E ainda que alunas/os negras/os tenham experiênciaspessoais parecidas com a da protagonista, a violência não é o único fator de ligaçãocom a narrativa.Interações aparentemente simples com diferentes aspectos presentes no textopossibilitam uma conexão de quem lê com o contexto da narrativa, rompendoestranhamentos tantas vezes existentes na literatura escolar. Durante a leitura, arelação da personagem Geni com a professora e as violências psicológicas são o centroda trama, contudo, uma abordagem sensível, envolvendo outros elementos, podemcontornar o fato e tentar resgatar memórias coletivas em torno de práticas escolaresnão necessariamente vividas em primeira pessoa.116Estimular conexões para além da dor é fundamental, uma vez que é muito comumno trabalho com obras afro-brasileiras a expectativa, por parte de quem media a leitura,que haja relações a partir de vivências pessoais de quem lê com o racismo. Ainda queeste vínculo exista, é possível que não seja verbalizado. E não deve ser esta a intençãodo trabalho com o tema. A conexão subjetiva não precisa do relato da violência para seestabelecer.Por isso, há de se ter uma abordagem muito cuidadosa, evitando processos defetichização da violência, ou de cristalização do lugar de “informante nativo” (hooks,2013), em que sujeitos que, concreta ou hipoteticamente compartilham da realidadeapresentada, são convidados – ou constrangidos – a compartilhar experiênciaspessoais, a fim de ilustrar a aula. Frequente em espaços de mediação branca, essapostura, além de embaraçosa e discriminatória, reforça as histórias únicas51, em que sepressupõe, a partir de traços identitários, experiências vividas pelos sujeitos,desconsiderando a individualidade e diversidade de suas vivências.A leitura do conto nos possibilita refletir também sobre como o olhar de pena edesprezo com que se enxerga a população negra escravizada ignora e apaga asestratégias de construção de subjetividades elaboradas ao longo do períodoescravocrata. Na trajetória de Geni, a narrativa da professoraviolentava o imaginárioacerca de sua ancestralidade, retratando a população escravizada como “bobos,51 Para Chimamanda Ngozi Adichie, uma “história única” é uma narrativa limitada e repetida sobre umgrupo ou cultura, que reduz sua complexidade e diversidade, levando a estereótipos e mal-entendidos. Aautora falou sobre o tema num TEDtalk realizado em 2009. Confira o vídeo em:https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story?subtitle=en&geo=pt-br117https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story?subtitle=en&geo=pt-brhttps://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story?subtitle=en&geo=pt-brcovardes, imbecis”, que “não reagiam aos castigos, não se defendiam” (Guimarães,p.62).A noção de que não existia voz ou qualquer agência sobre suas jornadas é irreal– até pesquisas rápidas na internet podem comprovar.Assim, é notável que os paradigmas que compõem o olhar da professora sobre ahistória, negando todos os movimentos de resistência, produção e orgulho dapopulação negra, são os mesmos que a impossibilitam de acolher a menina Geni. Aperspectiva que a (de)formou é embaçada pelo racismo de tal modo que a impede deenxergar a potência, a criatividade e o afeto na criança negra, conectando-se àpesquisa de Sherick Hughes, comentada anteriormente.Situações como essa, que se disfarçam de educação, aniquilam as possibilidadesde aprendizagem, de vínculo, do bem-viver de estudantes negras/os, culminando namorte do coração.“Pó de tijolo” ou as políticas pedagógicas de branqueamentoÉ pressuposto da Educação Integral, e de qualquer processo que se propõe a serefetivamente educativo, o olhar respeitoso para a outra pessoa. Muito mais do quecurrículo, a Educação deve ser compreendida enquanto processo de humanizaçãocoletiva e compartilhada, que se constrói a partir das trocas.A sequência de violências sofridas por Geni na escola culmina numa cenaextremamente dolorosa. Este episódio é constitutivo da identidade da personagemGeni, uma espécie de virada de chave – a tal da metamorfose? – por expô-la demaneira tão cruel ao racismo, à falta de afeto e de acolhimento, aniquilando suaauto-estima e auto-confiança. O racismo machucou tanto por dentro que a vontade foi118machucar por fora com pó de tijolo para tirar a negritude à força, pensando ser ela aculpada do sofrimento.Em um processo de mediação de leitura, este texto pode ser relacionado à obraAmnésia, de Flávio Cerqueira (2015)52. Na escultura de mais de um metro em bronze,Cerqueira representa uma criança negra entornando um balde de tinta branca sobresua cabeça, simbolizando as consequências das estratégias de branqueamento daspopulações negras no Brasil. Estimular a intertextualidade entre obras é uma estratégiaimportante a ser promovida na mediação, pois a intertextualidade, além de ser umahabilidade essencial para a compreensão e produção de textos, ajuda a descentralizara experiência de auto-ódio da menina Geni, negando a interpretação de um possível‘não-gostar’ individual e explicitando-a enquanto uma experiência coletiva, fruto doracismo sofrido pela população negra, retratada, inclusive, em diferentes produçõesartísticas.Este debate é fundamental, uma vez que o racismo e suas consequências sãorecorrentemente encaradas enquanto um problema do negro que, insatisfeito com suacondição de negro, busca aproximar-se da estética e de valores brancos, na tentativade dissolver suas características raciais. O curta-metragem Kbela (2015) surge comoum interessante contraponto para o debate ao apresentar a experiência de mulheresnegras que, a partir de seus cabelos crespos, reconectam-se à força e à sabedoriaancestrais, possibilitando transcender a ideologia do embranquecimento.As obras de literatura afro-brasileiras revelam-se aliadas pedagógicas, uma vezque elas contribuem para o questionamento da narrativa hegemônica brasileira, não só52 Flávio Cerqueira, artista plástico brasileiro, é natural de Salvador. Ele combina influências da culturaafro-brasileira com uma estética contemporânea, explorando temas de identidade e memória em suasobras. Você pode conferir a obra em: https://flaviocerqueira.com/trabalhos/920-2/.119https://flaviocerqueira.com/trabalhos/920-2/ocupando as prateleiras das livrarias e bibliotecas com temas e personagensesteticamente diversos, mas também ressignificando os efeitos do tráficotransatlântico, pois negam a ideia de desumanidade negra proposta pela colonização apartir da linguagem literária.Ao colocar em prática o direito de lembrar, contar e fruir as históriasafro-brasileiras, como fazia Vó Rosária, será possível, pouco a pouco, resgatar ahumanidade. Ao adentrar nas salas de aula, narrativas como as da escritora GeniGuimarães podem ser vistas enquanto movimento de aquilombamento pedagógico ecultural, que tenta estabelecer uma amarração epistemológica e identitária a partir dasnegras-narrativas-coletivas, reescrevendo memórias, construindo o presente esonhando futuros.Referências bibliográficasADICHIE, C. O Perigo da História Única. Vídeo da palestra da escritora nigeriana noevento Technology, Entertainment and Design (TEDGlobal 2009). Disponível em:https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story?subtitle=en&geo=pt-brCERQUEIRA, F. Amnésia. 2015. Escultura látex sobre bronze. Disponível em:https://flaviocerqueira.com/trabalhos/920-2/GUIMARÃES, G. Leite do Peito. São Paulo: Editora Mazza, 2001.HALBERSTADT, A. G.; COOKE, A. N.; GARNER, P. W.; HUGHES, S. A.; OERTWIG, D.;NEUPERT, S. D. Racialized emotion recognition accuracy and anger bias of children’sfaces. Emotion, v. 22, n. 3, p. 403–417, 2022. Disponível em:https://psycnet.apa.org/record/2020-45460-001120https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story?subtitle=en&geo=pt-brhttps://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story?subtitle=en&geo=pt-brhttps://flaviocerqueira.com/trabalhos/920-2/https://psycnet.apa.org/record/2020-45460-001hooks, b. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São PauloMartins Fontes, 2013.KBELA. Direção: Yasmin Thayná. Produção Erica Candido e Monique Rocco. Rio deJaneiro: s.n., 2015. 1 vídeo (21m). Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=LGNIn5v-3cE&t=4sSobre a autoraLara Rocha: Eu me chamo Lara, sou uma educadora baiana-paulistana que vira e mexeinventa de escrever umas reflexões sobre educação. Eu sou mestra em EstudosComparados de Literaturas de Língua Portuguesa, em que desenvolvi uma pesquisasobre Literatura Afrobrasileira e Educação Antirracista. Atualmente, eu sou gestora daárea de Educação do CEERT, uma organização negra que atua há mais de 30 anos emprol da equidade racial. Eu fui professora de Língua Portuguesa e coordenadorapedagógica da Rede Municipal de São Paulo, eu trabalhava com a meninada doFundamental 2. Meu grande chamego da Educação é ser coordenadora pedagógica noCursinho Popular Florestan Fernandes, onde estou desde 2012. No mais, transito pordiversos espaços, sempre falando de literatura, relações raciais e educação.FonteArtigo publicado originalmente na Revista Na Ponta do Lápis (ano XX – número 41,setembro de 2024) – Educar por inteiro: uma confluência de saberes e práticas parapensar a Educação Integral.121https://www.youtube.com/watch?v=LGNIn5v-3cE&t=4s2.13As quizambas53 da Educação Integral: uma perspectivaa partir do amor e da descolonizaçãoLara RochaInicio a escrita desse texto poucas horas depois de voltar de um passeio debarco pelas praias de Boipeba. Dei a sorte de fazer o passeio com Renato, um guianascido na ilha, que resolveu fugir da rota vendida pela agência para, além das paradasnas piscinas naturais, nos levar por uma trilha pelo manguezal. Cresci em Salvador. Jáhavia ido diversas vezes ao mangue. Mas,mais do que um passeio para observar esseecossistema tão rico, o que me marcou desta vez foi o encantamento e orgulhopresentes na fala de Renato. Como disse, conhecer o Mangue não é parte do roteirooficial, mas Renato cresceu ali, acompanhando seu pai e avô, pescadores, com quemaprendeu muito do que sabe sobre a região. Por saber da riqueza do local, assim comodos preconceitos existentes sobre o mesmo, decidiu incluí-lo em sua rota. Assim, porquase uma hora, caminhamos entre as quizambas enquanto escutávamos atentamentesuas palavras empolgadas e observávamos o movimento de seres até então invisíveispara nós, mas rapidamente avistados por Renato.53 Quizamba é como se nomeiam as raízes do mangue-vermelho, uma das principais espécies arbóreasdo mangue, própria de solos lodosos, com raízes aéreas (Santiago, 2017). Elas proporcionamestabilidade ao solo costeiro e a sobrevivência das plantas em ambientes encharcados, e servem comohabitat e alimento para diversos organismos. Proponho essa metáfora como alicerce da EducaçãoIntegral, considerando-as como estratégias de resistência em um ecossistema por vezes instável ouconturbado, mas extremamente poderoso. Para saber mais, acesse: Atlas dos manguezais do Brasil.122Quando penso em Educação Integral, penso justamente nesses saberes que sãoconstruídos de modo holístico e orgânico a ponto de, 30 anos depois, ainda geraremencanto. Renato conta dos cursos que fez junto a ONG’s e a órgãos como o IBAMA54, esabe da relevância dessas aprendizagens. Entretanto, é reconhecido por ele que a basedo que sabe sobre seu território, além dos truques para lidar com a vida e que hoje sãoimportantes para seu trabalho, não surgiram dos materiais didáticos. A diferença entreum guaiamum, um aratu e um caranguejo; do mangue-branco, vermelho e preto; aimportância da andada do caranguejo para a comunidade, ainda que não se possacatá-lo e comercializá-lo durante o acasalamento e a desova. Nada disso, do jeitinhoque nos foi contado, cabe apenas nos livros.Volto para a escrita pensando em como construir uma Educação que transcendaa transmissão de conteúdos acadêmicos, abraçando os conhecimentos que emergemda relação íntima com o território e com a comunidade e enxergando estudantes comosujeitos integrais, que já sabem um tanto e que devem ter vontade de aprender umtanto mais.A Educação Integral, para mim, é sinônimo da prática da liberdade (hooks, 2013;Freire, 1967), em que todas as pessoas são convidadas a exercerem sua autonomia comresponsabilidade e a expressarem suas identidades sem medo de discriminação ouexclusão. Vale dizer que não trato, aqui, da Educação em tempo integral, nem de uma54 IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) é uma autarquiafederal brasileira, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente. É responsável pela execução da políticanacional do meio ambiente, promovendo a preservação, conservação e uso sustentável dos recursosnaturais.123modalidade específica, mas do conceito que, inclusive, vai além da educação formalescolar55.A aprendizagem significativa, aquela que alcança e permanece no íntimo, partede um processo de ensinar que respeita e protege as almas de nossas/os estudantes(hooks, 2013). Sendo assim, a Educação Integral, que visa garantir essa aprendizagem,abraça a complexidade do ser humano em todas as suas dimensões: física, cognitiva,intelectual, afetiva, social e ética, reconhecendo-o como parte de um contextorelacional. O desenvolvimento pleno dessas dimensões é essencial para a formaçãocidadã, inserido numa construção democrática de sociedade.Nesse sentido, o olhar comprometido para as questões raciais e de gênero nãopode ser um recorte ou um tema transversal da Educação Integral. Elas são fundamentopara a construção de uma educação de qualidade e que de fato encaremeducadoras/es e educandas/os como sujeitos.Perguntamo-nos então: como transformar a escola num espaço de acolhimentodas diferenças? Em primeiro lugar, precisamos entender que isso não significa encarartodos como iguais. bell hooks, ao refletir sobre o tema, compreende que as pessoas nãoestão dadas, previamente constituídas. As pessoas são únicas. A sala de aula é única. Euma boa aula só acontece quando quem ensina se dispõe a aprender também. Aeducação como prática da liberdade não tem como ser transformadora só para as/osestudantes. A ideia equivocada e bobamente (ou estrategicamente?) repetida por tantotempo de que aluno é um ser sem luz, que está ali para aprender o que precisa antes decomeçar a viver de verdade, não condiz com a Educação Integral. Quando assumimos55 Para entender mais sobre o tema, leia: “Educação integral: um conceito em busca de novos sentidos”,publicado no Portal Saberes e Práticas, do Cenpec.124um olhar integral para o outro e para nós mesmos, nossos corpos e mentes devem estarpresentes e dispostos a se transformar com aquele grupo. Afinal, isso é aprender.Sendo assim, para alcançar essa visão de Educação Integral, é necessárioreconhecer e valorizar os saberes construídos na resistência, como os saberesindígenas, quilombolas, ribeirinhos, que há tanto tempo são marginalizados esilenciados. É uma jornada de descolonização pedagógica, que envolve concepções epráticas, e de promoção de uma educação que seja verdadeiramente inclusiva eemancipatória.É preciso reconhecer a existência de uma lacuna significativa em nossa formaçãoque compromete a qualidade do ensino. E pensar uma Educação Integral perpassa porconfrontar essa grande lacuna provocada pela educação eurocêntrica, racista efundamentada no supremacismo branco, e refletir sobre suas consequências para oprojeto de mundo que está posto.Assim, evoco as palavras de Luiz Rufino no livro Vence-demanda: educação edescolonização, no momento em que reflete sobre o papel da Educação:A educação diz acerca de práticas cotidianas; pertencimentos coletivos;fortalecimento comunitário; ética responsiva; aprendizagens; e circulação deconhecimentos que reposicionem e vitalizem os seres atravessados pelaviolência colonial. No caso daqueles que fazem parte do consórcio que sebeneficia e lucra com esse sistema de violência secular, a educação exerce opapel de interpelá-los, convocá-los a responder com responsabilidade,situá-los nos múltiplos tempos, espaços e narrativas que são sistematicamentesubtraídas para a blindagem de seu protetorado. (Rufino, 2021, p.14)125Em síntese, é parte do processo educativo o nascimento e renascimento coletivoa partir do diálogo, mas também do conflito.Para que isso se dê de maneira pedagógica, aciono o pensamento de bell hooks,que propõe o amor como ação. Ela defende uma perspectiva do amor sem deixar delado a importância do conflito e da tensão. Ou seja, reivindicar a raiva e o amor é umcompromisso com as nossas humanidades, além de um exercício diário rumo àliberdade. Aqui, amor nada tem a ver com encarar a docência como uma atividade nãoprofissional ou com um sentimento inocente de gostar de todas/os, mas, sim, comoparadigma fundacional de nossa existência. É uma compreensão do amor enquantoética.Partindo do que defende hooks, a pedagogia do amor é a ferramenta de luta quetemos para construir uma Educação Integral. Isso inclui até mesmo aqueles por quemnão nutrimos simpatia ou afinidade, mas cuja relação é permeada por umacompreensão do amor como uma força transformadora. Essa força pode abalar edesmantelar estruturas de desvalorização e opressão, construindo, assim, horizontes deigualdade por meio da criação de comunidades.Na busca pela criação de uma comunidade de aprendizagem56, as/oseducadoras/es se aproximam de estudantes com o anseio de compreender a existênciaúnica de cada uma/um, mesmo que as circunstâncias não favoreçam completamente odesenvolvimento de uma relação baseada na reciprocidade desta compreensão. Noentanto, a oportunidade paraesse reconhecimento mútuo está sempre presente.56 Para bell hooks (2013; 2021), uma comunidade de aprendizagem é um ambiente educacional em quehá uma escuta ativa, profunda e respeitosa entre todas as pessoas. Nessa comunidade, o aprendizado évisto como um processo coletivo e colaborativo, onde todas/os têm voz e são valorizadas/os por suascontribuições. É um espaço onde o diálogo aberto e o respeito mútuo são cultivados, permitindo apartilha de experiências, conhecimentos e perspectivas de forma equitativa.126A partir do reconhecimento e da escuta ativa de cada sujeito, educadoras/es,considerando seu repertório teórico e metodológico, aprendem a permitir que osconhecimentos da turma emerjam e se misturem aos saberes acadêmicos. Assim,desafiamos as hierarquias e encaramos a educação como um processo contínuo decrescimento e transformação coletiva. Vale lembrar que este processo de escuta ativanão é aleatório nem livre de mediação. Ele deve estar baseado numa intencionalidadedescolonizadora, no sentido de perceber e assegurar também a fala daquelas/es quemuitas vezes são caladas/os numa dinâmica de aula tradicional. Ao ativamenteinstigarmos suas vozes, reforçando o valor de todas as contribuições e reconhecendosaberes da resistência, praticamos o exercício proposto por Rufino de reposicionar evitalizar os seres atravessados pela violência colonial. Isso é a construção de umacomunidade de aprendizagem.Reconheço que este movimento pode ser desafiador e exaustivo em muitosmomentos. No entanto, não devemos subestimar o impacto negativo de persistir emuma rotina de ensino baseada em métodos e conteúdos tradicionais. A rotina da linhade produção (hooks, 2013) é muito violenta,para elas/es e para nós.A diferença crucial entre os cansaços advindos de cada movimento, seja omovimento em direção a uma educação libertadora ou aquele que insiste em práticasda educação bancária57, está em saber que ao menos o primeiro considera a potênciaque é acreditar em cada estudante como um ser único e empenhar-se na construçãode uma comunidade escolar fundamentada em valores que respeitamos e defendemos.O processo de construção de comunidades de aprendizagem é potente tambémpara docentes, muitas vezes aprisionadas/os numa dinâmica de isolamento profissional57 Para Paulo Freire, a educação bancária é um modelo opressor onde o conhecimento é depositadopassivamente nas/os alunas/os, limitando sua capacidade crítica e transformadora.127que nos torna “professoras/es-ilha”. Não conseguimos trocar com nossos pares; asangústias e conquistas vão e voltam conosco para casa, sobretudo quando somos partedas/os que desafiam a estrutura em espaços onde a transformação só acontece nasbrechas. Mas esse sentimento adoecedor pode ser aos poucos desconstruído a partirda ética do amor, proposta por hooks. O amor é fundamental para superar as divisõessociais, combater opressões e criar conexões genuínas entre as pessoas. Assim,encarando-o como prática pessoal e política, criaremos na escola um arquipélagopolítico-pedagógico comprometido com uma educação para a liberdade.Apesar de muitos aspectos estruturais e de concepção ainda refletirem o modeloclássico de ensino, pequenas revoluções já se tornaram naturais ao cotidiano: meninase meninos (e menines) numa mesma sala de aula; a presença ativa de estudantesnegras/os; as desigualdades raciais e sociais não mais como simples dado, masinfluenciando diretamente as políticas públicas, como na construção do VAAR58. Alémdisso, o ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena agora é parteintegrante da LDB59, explicitando a materialização dos sonhos de muitas gerações quelutaram para que isso acontecesse, por mais utópico que parecesse.Como afirma Nei Lopes no poema “História para ninar Cassul Buanga”, “nossoscorpos tensos / nossos corpos densos / venceram quase todas as competições”. Quasetodas. Ainda temos muito a vencer. Mas insisto, sempre que posso, em apontar oquanto já foi conquistado. A meu ver, é isso que nos alimenta a sonhar mais. Quandolemos bell hooks ou Luiz Rufino e pensamos na nossa sala de aula, aquela com mais de59 A LDB é a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, uma legislação brasileira instituída em1996 que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Ela contempla aspectos como currículoescolar, formação de professores e financiamento da educação.58 O critério de Complementação-Vaar (Valor Aluno Ano Resultado) faz parte dos parâmetros para adistribuição de recursos municipais estabelecidos pelo atual Fundeb. Seu objetivo é incidir sobre asdisparidades educacionais decorrentes de influências socioeconômicas e raciais.12830 estudantes, com conflitos e precariedades, não parece possível priorizar o amor e adescolonização.Tomemos a Educação Integral como pilar da nossa prática pedagógica, sabendoque nem sempre a aula será dialogada, nem leve ou lúdica. E tudo bem. É na troca comas pessoas, reconhecendo a potência do diálogo, que nos permitimos aprender eensinar. É um movimento de retomada das utopias, sem esquecer da realidade.Eduardo Galeano disse certa feita60 que a utopia serve para não deixarmos decaminhar. Penso que isso dialoga com o que refletimos, aqui, a partir do pensamento dehooks e Rufino. Porque é a utopia e a esperança que se constroem no dia a dia, a partirdo que acreditamos, mas, principalmente, do que fazemos, que nos permite caminhar.Sendo assim, seguiremos sonhando (e realizando) sonhos tão bonitos para a Educação.“Porque Zâmbi mandou. E está escrito”61.Referências bibliográficashooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo:Editora Martins Fontes. 2013.__________. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Editora Elefante. 2021.__________. Ensinando Comunidade: uma pedagogia da esperança. São Paulo:Elefante, 2021.LOPES, Nei. História para ninar Cassul Buanga. In: Incursões sobre a Pele, Rio, Artium,1996, pp 23-24.RUFINO, Luiz. Vence-demanda: educação e descolonização. Rio de Janeiro, Mórula,2021.61 Trecho do poema ‘História para ninar Cassul Buanga’, de Nei Lopes.60 O vídeo desta entrevista está disponível em diferentes canais no YouTube.129SANTIAGO, Caldo de lambreta: uma etnografia das catadoras da Lucina pectinata na vilade Garapuá, Cairu – BA. In: Revista Vivência, n. 50, 2017.Sobre a autoraLara Rocha: Eu me chamo Lara, sou uma educadora baiana-paulistana que vira e mexeinventa de escrever umas reflexões sobre educação. Eu sou mestra em EstudosComparados de Literaturas de Língua Portuguesa, em que desenvolvi uma pesquisasobre Literatura Afrobrasileira e Educação Antirracista. Atualmente, eu sou gestora daárea de Educação do CEERT, uma organização negra que atua há mais de 30 anos emprol da equidade racial. Eu fui professora de Língua Portuguesa e coordenadorapedagógica da Rede Municipal de São Paulo, eu trabalhava com a meninada doFundamental 2. Meu grande chamego da Educação é ser coordenadora pedagógica noCursinho Popular Florestan Fernandes, onde estou desde 2012. No mais, transito pordiversos espaços, sempre falando de literatura, relações raciais e educação.FonteArtigo publicado originalmente na Revista Na Ponta do Lápis (ano XX – número 41,setembro de 2024) – Educar por inteiro: uma confluência de saberes e práticas parapensar a Educação Integral.1302.14Educação Integral e ensino de Língua Portuguesa:diálogos necessáriosGina Vieira PonteUm dos maiores desafios que a educação tem enfrentado nos últimos anos estárelacionado ao fato de que ela é um campo estratégico para as mudanças sociais ecomportamentais e, por isso mesmo, é um campo de intensa e permanente disputa.Levamos décadas para elaborar, sistematizar e documentar na Constituição Federal, naLei de Diretrizes e Bases e em tantas outras normativas a concepção de educação quedesejamos defender,a educação como direito e como elemento decisivo na promoçãode uma formação humana integral. “Educação Integral” é um termo cunhado paraabarcar este sentido, um termo que anuncia um campo de estudos e um conjunto depráticas preocupadas em garantir que nos processos formais e informais de educaçãose consiga ir além da educação transmissiva, bancária e instrucionista e se chegue auma educação que olhe para a/o estudante em suas várias dimensões: intelectual,física, afetiva, social, histórica e cultural (Freire, 2018, Moll, 2021, Costa, 2024).A função social da escola é garantir a todas(os) as(os) que passam pelos seusportões o acesso ao conhecimento científico poderoso que nos conecta com o que ahumanidade foi construindo como saber, como experiência, como conhecimento, comomarco civilizatório ao longo do seu processo evolutivo. Falar de uma educação que se131comprometa em olhar para todas as dimensões que constituem as/os estudantes, falarde uma educação que se ocupe de educá-las/los para que construam o pensamentocrítico e incidam na sociedade buscando transformá-la é, portanto, falar de umaeducação que as/os olhe por inteiro, as/os perceba em sua inteireza, como sujeitossócio-históricos que são.Entendendo que a concepção de Educação Integral deve orientar a organizaçãodo trabalho pedagógico em todas as etapas e modalidades e no ensino de todos oscomponentes curriculares, como incorporar às aulas de Língua Portuguesa osprincípios, os pressupostos teóricos e as concepções da Educação Integral? Antes detudo, é necessário destacar que a base histórica do ensino de Língua Portuguesa noBrasil apoia-se na ideia de transformar as diferenças em deficiências. Por muitos anos,o país construiu uma proposta pedagógica de ensino de Língua Portuguesa muito maissustentada na ideia de confirmar às/aos estudantes das camadas populares a suasuposta incompetência em relação a falar e utilizar a própria língua de forma escrita doque para fortalecer, de fato, os seus saberes e conhecimentos sobre ela (Soares, 2002).A concepção de sociedade a partir da qual este ensino de língua foi propostoanunciava a condição de subordinação das classes populares às classes dominantes.Parte desta proposta pedagógica envolvia estigmatizar as/os estudantes das camadasmais populares, desqualificando os seus dialetos, os seus registros linguísticos eapresentando o Português como uma língua dominada apenas por um grupo seleto.Também é importante relacionar esta concepção de ensino de língua com a nossaherança colonial. Sendo o Brasil um país de base histórica escravocrata e racista, muitasdas teorias produzidas para pensar a educação brasileira, bem como o ensino de132línguas, eram reproduções de ideias europeias que partiam da compreensão de que osgrupos sociais miscigenados eram considerados incapazes (Patto, 2015).A nossa riqueza cultural, a nossa diversidade como país está em grande medidamaterializada na diversidade linguística que nos constitui. Uma vez que a linguagem é oprincipal produto da cultura, e o principal elemento para a sua transmissão, ignorar adiversidade linguística que nos constituiu é restringir e aligeirar o trabalho realizado noensino de línguas. Cientes do fato de que, ao longo da nossa história, esta perspectivado ensino de língua colaborou para tornar a/o estudante a/o única/o responsável pelosresultados pífios que muitas vezes se registra em relação às competências de leitura eescrita, se queremos abraçar a concepção de Educação Integral aqui discutida, éfundamental que haja um trabalho para a mudança de paradigma no ensino de LínguaPortuguesa que não comece na escola e, portanto, envolva mudanças estruturais.Uma categoria teórica e pedagógica central na mudança deste paradigma é ocurrículo e a maneira como ele é concebido e modelado nos projetos político-pedagógicos das unidades de ensino e pelas/os docentes na escola. No imagináriocoletivo, a ideia de currículo evoca uma lista de conteúdos/conhecimentos a seremensinados, em uma perspectiva prescritiva e a partir da crença de que estesconhecimentos são estáticos e neutros, que não estão posicionados do ponto de vistahistórico, social e político. Arroyo (2013) nos lembra de que o currículo, assim como aeducação, é um constante campo de disputa. Como afirma Silva (1999, p.147), “oconhecimento corporificado no currículo carrega as marcas indeléveis das relações depoder”. Abraçar a concepção de educação integral que celebramos implica, portanto,ampliar a compreensão do que é currículo, entendendo que, para além de uma lista deconteúdos a serem ensinados, o currículo é uma construção social, “currículo é lugar,133espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo é trajetória, viagem,percurso, o currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forjaa nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é documentode identidade” (Silva,1999, p.150).Todas as práticas adotadas na escola, todos os discursos enunciados, a formacomo as relações sociais são construídas, a maneira como a escola se articula com acomunidade, os princípios que orientam a condução das questões relativas àindisciplina, as/os autoras/es que são selecionadas/os para serem lidas/os, os gênerostextuais que serão pesquisados, a maneira como a escola lida com os saberes préviosdas/os estudantes e as lacunas que elas/eles trazem do seu processo de educaçãoformal, todos estes elementos constituem o currículo.No bojo desta compreensão de currículo reside também o intento de superar afalsa dicotomia que separa a Educação Integral, crítica e inclusiva da formaçãoacadêmica, como se formar para a cidadania e para a diversidade e inclusão fosse algomenor do que ensinar o conhecimento científico poderoso. Se a função primeira daescola é garantir o acesso ao saber, ao conhecimento científico poderoso, como já ditoneste texto, a maneira como o currículo é modelado precisa garantir que transversal atodas as práticas pedagógicas em que se busca garantir a cada estudante aconstrução deste conhecimento, também sejam observados o tempo para brincar, paraa convivência, sejam contemplados temas como educação ambiental, educação para aequidade étnico-racial, cidadania, democracia, com destaque para o respeito àidentidade linguística da/o estudante. Esta identidade e os usos que ela/ele faz dalíngua escrita são elementos primordiais para a construção de projetospolítico-pedagógicos que evidenciem um compromisso genuíno com a formação134humana ética, que partam da/do aluna/o real com a/o qual estamos trabalhando e queobservem o princípio da territorialização da ação pedagógica.Olhar integralmente para a/o estudante, em todas as dimensões, respeitando asua identidade linguística e da comunidade linguística do território a que ela/elepertence, destaca Guedes (1997), envolve ouvir o que a/o aluna/o tem a dizer no seudialeto, com a sensibilidade necessária para perceber a riqueza histórica, cultural esocial que aquele dialeto carrega, não para mudá-lo, ou para exigir que a/o estudante oabandone, mas para que ela/ele se compreenda como parte daquela comunidade epossa orgulhar-se dela.Esta postura de genuíno respeito ao saber linguístico da/o aluna/o deve estarintrinsecamente ligada ao compromisso ético de garantir que a/o estudantecompreenda a diversidade linguística que nos constitui e tenha a oportunidade de terum ensino de língua de qualidade teórica, pedagógica e humana. Isto significa criar ascondições adequadas para que ela/ele possa pensar de forma sistematizada agramática da própria língua, os gêneros textuais, as suas convenções e regras defuncionamento e possa conhecer, apropriar-se e fazer o uso do que alguns autoresconvencionaram chamar de dialeto-padrão, não como um dialeto superior ao seu, mascomo o dialeto necessário ao exercício da cidadania,necessário para que esta/esteestudante conquiste melhores e mais amplas condições de participação social, políticae cultural. Este é um imperativo ético de uma Educação Integral que estabelece umcompromisso inegociável com a garantia das aprendizagens (Guedes, 1997, Soares,2002).Para garantir este direito, as/os profissionais da educação precisam ainda secompreender como intelectuais orgânicos (Giroux, 1997), precisam ter a sua autoria e135autonomia respeitadas, devem ter como elemento norteador do seu fazer pedagógico apremissa de que “a aula de Português não faz sentido se não for dada para leitoras(es).Só a(o) leitor(a) pode ser chamada(o) a ler melhor o que leu e a escrever melhor o queescreveu, pois a noção de melhor, de qualidade, só pode ser construída por quemdispõe de termos de comparação” (Guedes, 1997, p.7). O sentido de ler, aqui, precisatambém ser reconfigurado, porque não se restringe à concepção de leitura muitas vezescristalizada na escola, em que se espera que a/o aluna/o leia apenas para aceitar oudescobrir os sentidos já constituídos como tradicionais nos textos. O que se devebuscar nesta leitura, como nos adverte o grande mestre Paulo Freire, é “umacompreensão crítica do ato de ler, que não se esgota na decodificação pura da palavraescrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência domundo” (Freire, 1989, p.23).Quanto à leitura, merece destaque também o trabalho com a literatura, aliteratura brasileira como este “esforço histórico que construiu uma cultura deresistência ao colonialismo” (Guedes, 1997, p.11), a literatura como espaço de reflexãocrítica sobre a realidade, sobre nós mesmos, a literatura como alimento para aimaginação. Em uma escola que se ocupa da Educação Integral, o trabalho com aliteratura tem centralidade, porque ela é um dos elementos culturais mais importantespara a formação humana, ética, artística e para o desenvolvimento da capacidade depensar de forma inteligente e profunda a realidade.Uma professora e um professor de Língua Portuguesa devem ter como princípiodo seu trabalho “nem pressupor o leitor e nem esperar por ele: sua tarefa é construí-lo”(Guedes, 1997, p.7). Na tarefa de construir a/o leitora/leitor, nós professoras eprofessores precisamos estar atentas/os também ao fato de que a curadoria que136fazemos dos textos que trabalharemos em nossas aulas, no nosso compromisso de quepromover uma Educação Integral não pode repercutir as exclusões históricas quedeixaram fora do currículo oficial as produções de mulheres, de escritoras e escritoresnegras/os, indígenas, quilombolas, bem como das/os escritoras/es locais, aquelas/esque escrevem sobre a realidade daquele território e daquela comunidade onde a escolaestá inserida.Destacando a escrita como um dos elementos centrais nas aulas de LínguaPortuguesa, é preciso lembrar que escrever se aprende escrevendo em espaçosseguros, onde o erro seja permitido, seja acolhido e compreendido como parte doprocesso de aprendizagem. Muitas vezes a escola não permite que a autoria da/oestudante floresça porque traz um foco exagerado no desejo de que ela/ele acerte, eeste foco contribui muitas vezes para que comportamentos inadequados sejamassumidos diante do erro. Dias (2023, p.13) nos lembra de que: “quando vivemos essefoco exagerado no acerto, nós reprimimos nossa criatividade, nossa palavra brincante,nossa ousadia de ideias”. Nenhuma/nenhum estudante deveria sentir medo, vergonhaou sentir-se incapaz por errar (Ruy; Souza, 2006).Falar da interface entre ensino de Língua Portuguesa e Educação Integral é falarda promoção de uma educação genuinamente transformadora. Se a língua é o nossoinstrumento mais importante de significação, representação e relação com o mundo, aforma como a escola ensina esta língua será decisiva não só quanto a garantir ou não odireito da/o estudante aprender, mas ela será decisiva na maneira como ela/eleconstruirá relações consigo, com a sua comunidade e com o seu país. Celebrar osprincípios da Educação Integral no ensino de Língua Portuguesa é responder ao convitede Guedes (1997, p.3): “Libertemo-nos, libertemos nossos alunos e nossas alunas da137pesada herança colonialista que tem feito do ensino de língua portuguesa um dos maiseficazes instrumentos de exclusão do povo brasileiro não só da escola, mas da vidacultural”.Referências bibliográficasARROYO, Miguel. Currículo, território em disputa. Petrópolis (RJ): Editora Vozes, 2013.COSTA, Natacha. Educação integral: uma reflexão sobre a concepção e suas práticastransformadoras. Disponível em:https://educacaointegral.org.br/reportagens/educacao-integral-uma-reflexao-sobre-concepcao-e-suas-praticas-transformadoras/DIAS, Juliana. Leitura e Produção de Textos. São Paulo: Ed. Contexto, 2023.FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 23ª ed.São Paulo: Cortez, 1989.___________. A Pedagogia do oprimido. 17ª edição. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra,2018.GIROUX, Henry. Os professores como intelectuais - rumo a uma pedagogia crítica daaprendizagem. Porto Alegre: ARIMED Editora, 1997.GUEDES, Paulo Coimbra. A Língua Portuguesa e a Cidadania. Repositório daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, 1997. Disponível em:https://lume.ufrgs.br/handle/10183/173953MOLL, Jaqueline. Caminhos da Educação Integral no Brasil: Direito a outros tempos eespaços. Editora Penso, 2021.PATTO, Maria Helena Souza. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão erebeldia. 4ª ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2015.138https://educacaointegral.org.br/reportagens/educacao-integral-uma-reflexao-sobre-concepcao-e-suas-praticas-transformadoras/https://educacaointegral.org.br/reportagens/educacao-integral-uma-reflexao-sobre-concepcao-e-suas-praticas-transformadoras/https://lume.ufrgs.br/handle/10183/173953RUY, Raquel Calil; SOUZA, Nádia Aparecida de. Avaliação Formativa no EnsinoFundamental II: possibilidades da atuação docente. Estudos em Avaliação Educacional,v. 17, n. 35, set/dez, 2006.SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade - uma introdução às teorias docurrículo. São Paulo: Ed. Grupo Autêntica, 1999.SOARES, Magda. Linguagem e escola: uma perspectiva social. 17ª edição. São Paulo: Ed.Ática, 2002.Sobre a autoraGina Vieira Ponte: Eu sou Gina Vieira Ponte, ceilandense, filha de Moisés e de Djanira.Quando tinha 8 anos de idade, fui abraçada pelo olhar sensível da professora Creusa e,desde então, escolhi a docência como profissão. Atuei na educação pública por mais de30 anos, dos quais 26, exclusivamente, no chão da escola. Em 2014, criei e desenvolvi oProjeto Mulheres Inspiradoras, uma iniciativa que articula a leitura de obras literárias deautoria feminina com a escrita autoral e com o resgate de memória. Eu sou feita decoragem.FonteArtigo publicado originalmente na Revista Na Ponta do Lápis (ano XX – número 41,setembro de 2024) – Educar por inteiro: uma confluência de saberes e práticas parapensar a Educação Integral.1392.15Catucá: de passagem por uma comunidade educadoraFernanda Mendes Soares BarreirosA Unidade de Ensino Fundamental Catucá, localizada dentro da comunidadequilombola Catucá, em Bacabal (MA), tem 26 alunas e alunos que frequentam desde aEducação Infantil até os anos iniciais do Fundamental.Foto: Denise MarquesCrianças jogando uma versão da amarelinha africana com bambu.140Em uma conversa com a jornalista Stephanie Kim Abe62, Vanderlucia Cutrim deSousa, a atual gestora da escola, conta que o corpo docente é formado por trêsprofessoras responsáveis por mediar três turmas multisseriadas. Combinar estudantesde diferentes etapas exige uma metodologia de trabalho singular e intimamenteconectada à compreensão dos diversos estágios de aprendizagem e formas deaprender presentes em uma mesma sala de aula. Ela relata, por exemplo, que adisposição das carteirasnão segue o modelo tradicional, enfileiradas uma atrás daoutra, mas são postas em semicírculos ou em dupla, de modo que uma criança quetenha mais dificuldade possa estar acompanhada de outra com maior desenvoltura paralidar com determinados conteúdos. Apesar das críticas frequentemente associadas aesse modelo de organização, essa foi a forma encontrada pela gestão da unidadeescolar para melhor acolher as necessidades e demandas de suas turmas que, emcontrapartida, têm alcançado resultados bastante positivos: “hoje nós conseguimosentregar os nossos alunos do quinto para o sexto ano todos alfabetizados”, afirma agestora.Foto: Vanderlucia Cutrim de SousaProfessora Dulcivania Cutrim dos Santos preparando oespaço para uma aula sobre as sementes tradicionais doterritório quilombola Catucá (2024).62 Stephanie Kim Abe é jornalista do Cenpec e conversou com Vanderlucia Cutrim de Sousa, gestora daUnidade de Ensino Fundamental Catucá, sobre algumas práticas pedagógicas que dialogam com oprincípio da educação integral. Essa conversa alimentou as reflexões propostas neste texto e apresentoualgumas das ações desenvolvidas por essa escola maranhense.141A perspectiva de educação exercida por essa unidade de ensino no territórioquilombola Catucá parte de um princípio aparentemente muito simples: a escola é partede uma comunidade, e a comunidade também é educadora.Vanderlucia conta do profundo envolvimento que o Quilombo Catucá vemtramando com a escola – “[...] é aquela escola que está lá e a pessoa está vindo da hortaou do trabalho e encosta para conversar, para tomar um café, abrir a porta da sala edizer bom dia. É uma relação muito estreita porque as pessoas têm ciência que a escolaé delas”.Essa presença diligente das pessoas é essencial para que a escola pense aeducação de suas alunas e alunos tomando como referência os saberes que são dacomunidade e estão conectados às dinâmicas sociais daquele território, compondo,portanto, junto ao currículo formal, o que é matéria de ensino e aprendizagem. Nestesentido, Vanderlucia defende que a construção do conhecimento deve ser feita nocoletivo e com os quilombolas: entram na escola “as tias de todo mundo” com oentendimento sobre as ervas medicinais, com as receitas dos xaropes, doslambedores63, dos chás, do benzimento; entram ainda os jogos de tabuleiro africanos eindígenas, confeccionados com a ajuda do senhor Valdemar Rodrigues, vigia da escolae morador do quilombo, e que muito contribuem para a oferta de materiais pedagógicosem diálogo com as questões étnico-raciais.63 Lambedores são xaropes caseiros preparados com plantas medicinais, açúcar ou mel, utilizados nocombate aos sintomas de gripes e resfriados.142Foto: Vanderlucia Cutrim de SousaVanderlucia Cutrim de Sousa, professora e atualgestora da U.E.F Catucá, levando materiais e livrosparadidáticos para as crianças da comunidadedurante a pandemia de Covid-19 (2020).Vanderlucia não apenas mantém as portas da escola abertas para a comunidadecomo também circula por ela, observando os diversos modos de viver e de ocupar oterritório manifestados pelas pessoas que ali habitam. Foi numa dessas andanças queveio a inspiração para criar a Catucateca dos Terreiros, uma biblioteca escolar, mas denatureza comunitária.A ideia surgiu em 2020, ano pandêmico, quando a gestora e outras professorasorganizavam materiais e atividades impressas, junto a livros paradidáticos – “um meiode dar ludicidade, de dar leveza para aquele momento” –, e distribuía entre as alunas ealunos para manter um vínculo com a escola e com as práticas de ensino. “Eu fazia143aquele passeio pelo quilombo e via as crianças lendo debaixo dos pés de atracas64, noalpendre de suas casas, naquela mesinha que a mãe organizava ali debaixo do pé deárvore. Então eu disse, vamos lá de Catucateca dos Terreiros! E as meninasquestionavam, mas como dos terreiros Vanderlucia? E eu disse, é porque ela vai estarem todos os terreiros, como sempre esteve”.A leitura, as contações de história, as brincadeiras e os jogos que durante apandemia ocuparam os alpendres das casas avistadas por Vanderlucia se tornarampresentes também no terreiro da escola. E assim se materializou a biblioteca da U.E.FCatucá: com seu acervo exposto em balaios, esteiras e cavaletes manufaturadospelas/os quilombolas, as/os frequentadoras/es do lugar possuem autonomia pararetirar qualquer material e fazer o registro do empréstimo. Não há tempo definido paraa devolução porque “na Catucateca dos Terreiros você tem o seu tempo de leitura”. Ascrianças da escola também se engajaram na organização deste espaço e exercem umaespécie de gestão do cuidado: são elas que deixam os livros expostos no início do dia,guardam tudo no fim da tarde e zelam pelo retorno dos títulos emprestados.Em outra andança pelo Quilombo de Catucá, Vanderlucia se aproximou de MariaMiranda, que conta brevemente sobre esse encontro em um vídeo produzido pelo64 Segundo a própria Vanderlucia, atracas são “pés de árvore” bastante comuns nos alpendres das casasdo Quilombo Catucá. Os pés de atracas, em algumas regiões do Brasil, também são conhecidos comoplantas que se desenvolvem em palmeiras, numa relação ecológica parasitária.144CEERT, no contexto do prêmio Educar para a Igualdade Racial e de Gênero65: “ela chegoue me viu aqui cantando, em minha casa mesmo, e ela disse ‘você tem esse segredo háum bocado de ano?’, e eu disse ‘tenho’, e ela mandou fazer o tambor”.Foto: Vanderlucia Cutrim de SousaRoda de Tambor de Crioula com a coreira Maria Miranda ao centro.65 Criado no início dos anos 2000 pelo CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho eDesigualdades), o prêmio Educar para a Igualdade Racial e de Gênero tem como objetivo identificar,apoiar e dar visibilidade às iniciativas pedagógicas desenvolvidas por docentes e gestoras/es em todosos níveis de ensino, nas cinco regiões geopolíticas do país, e que buscam a equidade e igualdadeétnico-racial e de gênero na Educação Básica. As experiências da Unidade de Ensino FundamentalCatucá foram registradas neste vídeo, disponível no YouTube:https://www.youtube.com/watch?v=2HVHKA7p0mk.145https://www.youtube.com/watch?v=2HVHKA7p0mkMaria Miranda é coreira66 do Tambor de Crioula, uma manifestação cultural típicado Maranhão, reconhecida como Patrimônio Imaterial Brasileiro67 desde 2007.Tornou-se professora de tambor e dança na unidade de ensino, formando um grupojunto às alunas. Essa é uma das ações mais concretas presente no cotidiano da escolahoje, e que melhor reflete a identidade e resistência do Quilombo Catucá. Vanderluciadiz: “a gente não tem um dia específico para dançar Tambor de Crioula. A gente dançana segunda-feira, na terça, na sexta-feira, dança no dia de São Benedito, ou não dançano dia de São Benedito. A gente dança para te receber se você for ao nosso quilombo”.A Catucateca dos Terreiros e o Tambor de Crioula são ações desenvolvidas peloprojeto Identidade, Resistência e Educação Escolar Quilombola, que encontra terrenofértil na U.E.F Catucá desde 2013. Ao longo dos anos, a escola buscou delinear umaproposta de educação que convoca a participação ativa, tanto de estudantes quanto dacomunidade onde está inserida, para uma elaboração colaborativa de saberes epráticas que integram as dimensões do que é próprio da realidade e do contexto localao que é já convencionado como conhecimento inscrito numa tradição científica ampla,da humanidade.É neste arranjo de múltiplos saberes, aprendizagens e possibilidades queVanderlucia enxerga a função social de sua escola e o seu compromisso com uma“educação em que o cidadão se desenvolva de forma integralizada culturalmente,socialmente, politicamente”. Ainda segundo a gestora, é preciso “alimentar a67 De acordo com o IPHAN, o Tambor de Crioula é uma “forma de expressão de matriz afro-brasileira queenvolve dança circular, canto e percussão degregos,romanos, alemães, italianos…Aos poucos, fui compreendendo que o que a Lei 10.639/2003 e a Lei 11.645(aprovada em 2008 e que tornou obrigatório também o ensino voltado para a cultura ea história dos povos indígenas) propunham era uma mudança profunda no paradigmaeducacional brasileiro. Aplicar estas leis significava mudar profundamente muitas dasnossas crenças, saberes, visões de mundo e percepção da cultura, e mudar, inclusive,muito do que estava anunciado nos nossos currículos e materiais didáticos. Fui medando conta de que era necessário propor uma educação antirracista, antes de tudo,porque a nossa educação é racista. Podemos falar com toda segurança que a nossaeducação é racista porque, como nos informa a grande Lélia Gonzalez1, a educação quenos é oferecida privilegia como superiores e válidos os saberes, a visão de mundo, areligiosidade, a estética, as crenças e os valores de um grupo étnico específico: osbrancos. Tudo isso faz parte de um projeto de poder que começa com o Brasil Colônia eque segue até hoje, porque como alguns autores nos lembram, a colonização temefeitos, desdobramentos que não cessam quando o país deixa de ser colônia dePortugal. Estes efeitos se espraiam no que estes autores vão chamar de “colonialidadedo ser, do saber e do poder".1 LÉLIA GONZALEZ (1935-94) foi uma das mais importantes intelectuais brasileiras do século XX eautora de uma extensa produção escrita sobre os estudos de raça e gênero no Brasil. Leia mais sobre aautora no linkhttps://www.google.com/url?q=http://www.letras.ufmg.br/literafro/ensaistas/1204-lelia-gonzalez&sa=D&source=docs&ust=1729628313267882&usg=AOvVaw21NUnb8suFwZTLfTDShVBt.12http://www.letras.ufmg.br/literafro/ensaistas/1204-lelia-gonzalezhttp://www.letras.ufmg.br/literafro/ensaistas/1204-lelia-gonzalezEm função desta imposição da perspectiva europeia e branca ao longo daformação das(os) docentes, que se traduz em uma barreira para aplicação das Leis10.639 e 11.645, hoje, passados esses 20 anos, já ouvi algumas pessoas dizerem que alei “não pegou”, como muitas leis que não pegam no nosso país. Eu, que estive estes 20anos no chão da escola, discordo desta afirmação. De fato, como apontou o estudoEducação antirracista: pesquisa sobre a implementação da Lei 10.639/03 nosmunicípios brasileiros2 realizado pelo Geledés, Instituto da Mulher Negra e pelo InstitutoAlana, das 1.187 secretarias municipais de educação consultadas, ou seja, 21% do totaldas redes municipais de ensino, 71% afirmaram que realizam pouca ou nenhuma açãopara garantir o cumprimento da lei. Em relação à realização de ações consistentesvoltadas à aplicação da lei, apenas 29% deste já reduzidos 21% declararam fazê-lo.Estes dados apontam que, realmente, há muito a avançar quanto ao cumprimento da lei.Por outro lado, é importante dizer que há muito a comemorar também. Pesquisadorasdo tema, como a professora Nilma Lino Gomes nos convidam a refletir com maisprofundidade para percebermos como, de forma inconteste, nos últimos 20 anos, aexistência da Lei 10.639 trouxe mudanças para o cenário educacional brasileiro.Em um seminário em celebração a estes 20 anos promovido pela Ação Educativa(assista ao vídeo do evento aqui3), Nilma, pesquisadora da Universidade Federal deMinas Gerais (UFMG) e figura decisiva na elaboração de políticas públicas voltadas àaplicação da lei, destaca cinco dimensões dos ganhos proporcionados e eu compartilhoaqui com vocês estas dimensões e as reflexões que a professora faz a partir de cadauma delas:3 Disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=4QPHHtR3qQc.2 Disponível no link https://alana.org.br/educacacao-antirracista-lei-10639/.13https://alana.org.br/educacacao-antirracista-lei-10639/https://alana.org.br/educacacao-antirracista-lei-10639/https://www.youtube.com/watch?v=4QPHHtR3qQchttps://www.youtube.com/watch?v=4QPHHtR3qQchttps://alana.org.br/educacacao-antirracista-lei-10639/1. Pedagógica: o primeiro grande ganho trazido pela lei é o fato de que ela trouxevisibilidade a um tema que estava silenciado no currículo. A lei provocou-nos apensar práticas pedagógicas que combatam a lógica universalizante,proporcionou a possibilidade do protagonismo de profissionais negras(os) queantes não eram tão valorizadas(os) quanto deveriam, provocou as instituições ase reeducarem sobre o tema, em especial, quanto ao seu olhar para o continenteafricano.2. Política: a lei ampliou a dimensão democrática da educação, trouxe luz àresponsabilidade da Educação Básica quanto ao enfrentamento ao racismo edestacou a indissociabilidade entre raça e poder. A criação da lei estimulou umentendimento mais profundo de que a responsabilidade pela educação para asrelações raciais não é apenas das famílias negras e do Movimento Negro, mas detoda a sociedade. Também é importante olhar para a lei dentro de um conjuntode outros dispositivos criados e aprovados visando à promoção da equidadeétnico-racial, as ações afirmativas, como a Lei de Cotas que estimularam oacesso de estudantes negras(os), indígenas e quilombolas a universidadesfederais, o que, por sua vez, provocou uma mudança profunda na agenda depesquisas e no mercado editorial.3. Ética: a aprovação e a obrigatoriedade do cumprimento da lei provocoutodas(os) nós a repensarmos a nossa prática pedagógica, a partir de reflexõessobre o quanto o racismo violenta e prejudica o desenvolvimento de estudantesnegras(os). A dimensão ética ainda se relaciona à ideia de que é necessário14promover justiça cognitiva, equidade e respeito, garantindo às(aos) estudantesnegras(os) serem percebidas(os) e respeitadas(os) em toda a sua potência.4. Estética: a lei provocou e estimulou a produção de discursos afirmativos sobre acorporeidade negra. Graças à obrigação de cumprir a lei, passamos a prestarmais atenção na potência estética que existe dentro da escola e quecostumeiramente, ou era ignorada, ou tratada de forma depreciativa.5. Memória: há 20 anos professoras e professores, em função do desejo de fazercom que a lei fosse cumprida foram provocadas(os) a retomar a memória, aestética e o legado do povo negro. Neste sentido, a professora Nilma lembra-nosde que os nossos antepassados nos deixaram também um legado de amorfundamental para que não nos percamos nas armadilhas do ódio.Toda lei deve traduzir-se em materialidade, em uma política pública, portanto,elas não podem ser vistas como mero produto, mas como um processo permanente.Entendo, portanto, que este é um momento em que precisamos celebrar a existência daLei 10.639 que só existe em função de lutas históricas e reivindicações que levarammais de 500 anos para serem ouvidas. Além de comemorar a existência da lei,precisamos também seguir trabalhando com afinco para que a sua aplicação aconteçade forma mais ampla e qualificada.Neste sentido, nos últimos 10 anos, além de ter atuado como professora daEducação Básica, pude, também, atuar como formadora de docentes. Só de 2020 até2023 foram quase 500 formações, conversando com professoras e professores das 1415regionais de ensino do Distrito Federal e com docentes de 12 unidades diferentes dafederação. Em todas as formações que ministrei, sempre trazia de forma transversal aquestão da educação para as relações étnico-raciais-ERER. Quer o assunto fosse oensino remoto em um contexto de pandemia, quer fosse o projeto Mulheres Inspiradorasou ainda Pedagogia Crítica de Projetos, eu sempre trazia ao diálogo a questão racial.Além disso, desde que a lei foi criada e começou a ser aplicada, eu pude ver de pertocomo esta aplicação acontecia nas escolas.A partir destas vivências, das minhas leituras sobre o tema e do que vi nosdiálogos que realizei ao longo das formações que ministrei, mapeei alguns pontosfundamentais para que possamos trabalhar para que a aplicação da Lei 10.639 não sóaconteça, mas aconteça de forma qualificada, atingindo ostambores”. Para saber mais, consulte o dossiê completodisponível em PDF no endereço eletrônicohttp://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/dossie15_tambor.pdf.66 Coreiras são mulheres que realizam uma dança de movimentos circulares enquanto os cantadores etocadores, com suas vozes e seus tambores, ditam o ritmo da roda.146http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/dossie15_tambor.pdfsubjetividade das crianças para que elas se construam empoderadas, comconhecimento e emancipadas para que possam se defender [do racismo] e viver emoutros territórios”.Para o Quilombo de Catucá, portanto, a educação passou a ser de interessecoletivo. Dessa forma, os processos de continuidade e permanência de suas crianças ejovens no sistema de ensino, o resgate da cultura e da identidade do território e aconstrução de uma escola com a cara das crianças, de uma escola quilombola, é umaaposta que toda a comunidade faz, cotidianamente e integralmente, em seu própriofuturo.Sobre a autoraFernanda Mendes Soares Barreiros: Eu nasci na rua do Campo do Atlético Goianiense,mais conhecido como Castelo do Dragão, em Goiânia, Goiás. Eu sou graduada em Letraspela USP e mestranda no Programa de Estudos Comparados de Literaturas de LínguaPortuguesa pela mesma universidade. Iniciei minha trajetória como mediadora de leituraem ocupações urbanas de luta por moradia, na cidade de São Paulo e, desde 2018,realizo rodas literárias com as leitoras da Penitenciária Feminina da Capital (PFC-SP).Atualmente, eu sou também consultora de projetos do Programa Escrevendo o Futuro.FonteArtigo publicado originalmente na Revista Na Ponta do Lápis (ano XX – número 41,setembro de 2024) – Educar por inteiro: uma confluência de saberes e práticas parapensar a Educação Integral.1472.16A importância de celebrar o 20 de novembro – Dia daConsciência NegraWashington Góes"Povo nas ruas é dinamite, campo minado, exigindo 20 de novembro feriado!Zumbi, o herói dos libertários, guerreiro daqui!"– Gog, Fogo no PavioDia 20 de novembro de 1995 foi lembrada a morte do grande ícone da populaçãonegra na sociedade brasileira, Zumbi dos Palmares (morto em 1695). Na ocasião, osmovimentos negros, sindicatos e diversas organizações populares se reuniram numamanifestação para exigir ações concretas de políticas públicas de combate ao racismoe a todas formas de discriminações raciais. Ocorreu, então, a Marcha Zumbi Contra oRacismo, pela Igualdade e a Vida.Entre outras reivindicações, a militância organizada exigia o reconhecimento dodia 20 de novembro como a verdadeira data de luta e emancipação da população negrae que este dia se tornasse feriado nacional.Por que o dia 20 de novembro?Para os movimentos negros, o dia 13 de maio de 1888 não representa de fato aabolição da escravidão, muito menos é uma data que dialoga com os anseios dos/das148descendentes de africanos no Brasil. Além de representar uma pauta que manifestava ointeresse de uma sociedade branca, essa data se concretiza em um ato, pelo qual seassina uma lei com dois inexpressivos artigos que, obviamente, não dizem nada sobre ainclusão política e social dos negros e negras quanto cidadãos e cidadãs.Ademais, o não reconhecimento do dia 13 de maio de 1988 como o dia daliberdade dessa população significa também que os escravizados e escravizadas nopaís já estavam objetivamente organizados/as e lutando, fato que demonstra oprotagonismo dos quilombolas na dinâmica da abolição da escravidão.Por isso, foi necessário pensar em uma data que representasse essa população,de modo que significasse a busca pela emancipação humana dos negros e negras nasociedade brasileira.Eis o dia de Zumbi e DandaraA ideia do Dia da Consciência Negra aconteceu em 1971, em Porto Alegre, poriniciativa do então Grupo Palmares. Segundo consta, um coletivo de universitários sereuniu para pensar formas de protestar contra a proibição da presença de jovensnegros num clube da capital gaúcha e discutir a situação do negro, em geral. Entreoutras pautas, foi pensada uma data alternativa ao 13 de maio para celebrar a luta ehistória deste povo.Anos depois, com a atuação do Movimento Negro Unificado (MNU), o dia 20 denovembro se tornou um ato político de afirmação da história. Em seu manifesto nacionalo MNU declara:149"[...] gritamos contra a situação de exploração a que estamos submetidos, lutandocontra o racismo e toda e qualquer forma de opressão existente na sociedadebrasileira, e pela mobilização e organização da comunidade, visando uma realemancipação política, econômica, social e cultural." (1978 apud GONZALES, 1982, p.59)A partir de então, o dia 20 de novembro (como data de luta contra o racismo)ganha dimensão nacional, é pautado e celebrado, independentemente de suainstitucionalização. Aparece com maior visibilidade, força e apoio social amplo naMarcha contra o Racismo pela Igualdade e a Vida, em 1995.No campo institucional, em 2003, foi promulgada a Lei 10.639, que altera a Lei deDiretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), para incluir no currículo oficial das redesde ensino público e privado em todo o país a obrigatoriedade do ensino de História eCultura Afro-Brasileira e Africana. É importante mencionar que a reivindicação detrabalhar a cultura produzida pelo povo negro na escola também é antiga e estevepresente tanto na pauta da fundação do MNU quanto na marcha de 1995.Além da obrigatoriedade de um conteúdo que retrate a história e as lutas dosnegros e negras como agentes ativos e protagonistas de suas ações e que tambémaborde as contribuições desse povo na história e cultura do Brasil, a lei estabeleceparâmetros curriculares com o objetivo de contribuir com elementos que superem aabordagem do negro de forma pejorativa nas escolas. Nesse contexto, o artigo 79-Bdefine que “o calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional daConsciência Negra'” (Brasil, 2003).150Em 2011, o governo brasileiro, por meio da Lei n. 12.519, oficializa o “Dia Nacionalde Zumbi e da Consciência Negra”.O fato de o Estado reconhecer a importância da oficialização de datas nãoimpediu que a sociedade organizada desse continuidade ao debate e discussão sobreas questões que estão no contexto dessa luta. Assim, ocorre desde sempre aproblematização sobre o protagonismo da mulher negra no movimento. Nesse sentido,os movimentos sociais continuam com reflexões sobre as estratégias de luta contra oracismo e seus espaços.Desde Lélia Gonzales (e outras) até os dias atuais, a pauta sobre a atuação damulher negra vem ganhando destaques tanto nas entidades quanto nos espaçosacadêmicos. A ideologia que demonstra apenas o homem heterossexual como ícone daslutas sociais vem sendo questionada e, cada vez mais, é destacada a atuação damulher como protagonista. É neste contexto que aparece a figura de Dandara, comorepresentante de inúmeras militantes importantes na organização do Quilombo dePalmares, entre outros.Para conhecer a história de Lélia Gonzales, clique aqui68.Assim, a data de 20 de novembro representa um espaço de reflexões sobre ocombate ao racismo e todas as formas de exploração que se estende ao ano todo. Éparte de um conjunto de ações afirmativas institucional que se reverbera, sobretudo,nos espaços educativos com atuações formativas que visam colocar e reafirmar na68 Disponível no link https://www.geledes.org.br/hoje-na-historia-1935-nascia-lelia-gonzalez/.151https://www.geledes.org.br/hoje-na-historia-1935-nascia-lelia-gonzalez/https://www.geledes.org.br/hoje-na-historia-1935-nascia-lelia-gonzalez/ordem do dia a humanização de uma população imensa que contribuiu e contribui coma história e acumulação da riqueza mundial.Nas palavras de Lélia Gonzales:"O 20 de novembro transformou-se num ato político de afirmação da história do povonegro, juntamente naquilo em que demonstrou sua capacidade de organização daproposta de uma sociedade alternativa; na verdade, Palmares foi o autêntico berço danacionalidade brasileira ao se constituir como efetiva democracia racial, o símbolovivo da luta contra todas as formas de exploração." (1982, p. 57)O trabalho com a literatura na perspectiva da educação étnico-racial: algumaspitadasAs práticas mencionadas acima repercutem e influenciam praticamente todas asáreas do conhecimento, fomentando, na dinâmica social, e por sua vez, nas políticaspúblicas, a necessidade de pensar ações afirmativas que contemplem a populaçãonegra.O foco aqui é elencar algumas pequenas ideias e possibilidades para pensar otrabalho com literatura na perspectiva da educação étnico-racial. De antemão, não seráapresentado nada de novo, porém, ainda de suma importância para refletir sobre otema em questão.Neste particular, a Lei 10.639/03 estabelece que “os conteúdos referentes àHistória e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículoescolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e HistóriaBrasileiras”. Ou seja, trata-se de uma temática que deve ser abordada em todas as152disciplinas previstas para a educação básica, porém há uma atenção especial parahistória, artes e literatura.Para trabalhar a literatura na perspectiva das ações afirmativas, é importanteconsiderar duas abordagens (entre outras):1. Como a população negra aparece nos textos literários de forma positiva(protagonista, não estereotipada, humanizada);2. Trabalhar com a leitura e estudos de/sobre escritores e escritoras negras nosdiversos gêneros.A primeira abordagem é importante para superar o recorte pejorativo sobre osnegros e as negras ao longo da história. É comum nas literaturas, sobretudo romances,o descendente de africanos aparecer como um sujeito passivo, desprovido deinteligência, pessoa com mau caráter, boçal etc. Essa representação reforça umaideologia escravagista que, em alguma medida, ainda está em voga na sociedade. Umavez que as personagens aparecem como figuras caricaturadas, a mensagem que asociedade passa é a de uma população naturalmente inferior e criminalizada.Nota-se que se trata de uma construção social, pautada pela ideologia racista.Essa ideologia constrói no imaginário das pessoas (sobretudo no processo educativo)um ideal de “bom ser humano”: o branco.Por outro lado, hoje, encontram-se várias obras literárias que valorizam ehumanizam as personagens negras. Basta “dar um Google69” que aparecem inúmeros69 Disponível no linkhttps://www.google.com/search?q=literatura+infantil+e+juvenil++afro-brasileira&rlz=1C1SQJL_pt-BRBR910BR910&sxsrf=ALeKk03f9fA6hHN27MmBUjg-yt9p-r7oMA:1605123212839&source=lnms&sa=X&ved=2ahUKEwjb2q_3nfvsAhXQMd8KHcFNAzoQ_AUoAXoECAwQAw&biw=1366&bih=657&udm=2153https://www.google.com/search?q=literatura+infantil+e+juvenil++afro-brasileira&rlz=1C1SQJL_pt-BRBR910BR910&sxsrf=ALeKk03f9fA6hHN27MmBUjg-yt9p-r7oMA:1605123212839&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwjb2q_3nfvsAhXQMd8KHcFNAzoQ_AUoAXoECAwQAw&biw=1366&bih=657https://www.google.com/search?q=literatura+infantil+e+juvenil++afro-brasileira&rlz=1C1SQJL_pt-BRBR910BR910&sxsrf=ALeKk03f9fA6hHN27MmBUjg-yt9p-r7oMA:1605123212839&source=lnms&sa=X&ved=2ahUKEwjb2q_3nfvsAhXQMd8KHcFNAzoQ_AUoAXoECAwQAw&biw=1366&bih=657&udm=2https://www.google.com/search?q=literatura+infantil+e+juvenil++afro-brasileira&rlz=1C1SQJL_pt-BRBR910BR910&sxsrf=ALeKk03f9fA6hHN27MmBUjg-yt9p-r7oMA:1605123212839&source=lnms&sa=X&ved=2ahUKEwjb2q_3nfvsAhXQMd8KHcFNAzoQ_AUoAXoECAwQAw&biw=1366&bih=657&udm=2https://www.google.com/search?q=literatura+infantil+e+juvenil++afro-brasileira&rlz=1C1SQJL_pt-BRBR910BR910&sxsrf=ALeKk03f9fA6hHN27MmBUjg-yt9p-r7oMA:1605123212839&source=lnms&sa=X&ved=2ahUKEwjb2q_3nfvsAhXQMd8KHcFNAzoQ_AUoAXoECAwQAw&biw=1366&bih=657&udm=2títulos de literatura infantil e juvenil que retratam a história e trabalham a autoestimada população negra, rompendo com estereótipos e estigmas sociais.A segunda abordagem diz respeito aos escritores e às escritoras negras. Aoconsulturar a lista de obras literárias obrigatórias para a Fundação Universitária para oVestibular (Fuvest) nos últimos três anos (2019 a 2021), percebe-se que há apenas umescritor negro, Machado de Assis. Se considerarmos que (hipoteticamente) o aluno do3º ano do Ensino Médio está focado no vestibular, podemos inferir que este passará nomínimo um ano sem ler algum escritor ou escritora negra. Isso significa que a sociedadeestá dizendo que os/as negros/as não escrevem, ou que, se escrevem, o fazem semqualidade.Os estudos e pesquisas recentes estão postos para desconstruir essa ideologia edemonstrar que não é de hoje que homens e mulheres negras estão produzindoliteratura brasileira.É possível apresentar alguns nomes, sem excluir muitos outros, presentes naslivrarias e bibliotecas, como: Carolina Maria de Jesus, Carlos Assumpção, Cruz e Souza,Cuti, Esmeralda Ribeiro, Conceição Evaristo, Cristiane Sobral, Jarid Arraes, Maria Firminados Reis e Lima Barreto.Em linhas gerais, o dia 20 de novembro, como o Dia da Consciência Negra, veiopara contribuir com a problematização e rompimento de padrões estéticos, morais eculturais na sociedade brasileira. Tem como ponto central pensar em estratégias paraconstruir e reconstruir, a todo momento, a humanidade da população negra.Nesse processo, a educação é uma ferramenta fundamental. Porém, a sociedadeprecisa criar condições para implementar mudanças de paradigmas e,154consequentemente, romper com dogmas e estigmas. Assim, celebrar essa data significatambém reconhecer que o racismo existe e precisa ser superado.Referências bibliográficasBRASIL. Lei 10.639/2003, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9. 394, de 20 dedezembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília. 18 de abr. de 2010.FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro. São Paulo, Cortez: AutoresAssociados, (Coleção Polêmicas do Nosso Tempo; vol. 33), 1989.GONZALES, Lélia. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, (Coleção Dois pontos. V 3),1982.JORNAL DA MARCHA. São Paulo, outubro de 1995. Disponível em:https://acervo.socioambiental.org/sites/default/files/documents/03D00040.pdfMOURA, Clovis. História do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1992.PIRES, DENISE; CAMILO, Plínio. 20 escritores e escritoras negras para ler hoje e sempre.Casa um. Disponível em:https://www.casaum.org/20-escritores-e-escritoras-negras-para-ler-hoje-e-sempre/Sobre o autorWashington Góes é educador social, mestre em educação pela Pontifícia UniversidadeCatólica de São Paulo (PUC/SP). Pós-graduando em Cultura, Educação e RelaçõesÉtnico-Raciais na Universidade de São Paulo (CELACC/USP). Trabalha comocoordenador regional no Educação com Arte no CENPEC Educação, projeto quedesenvolve oficinas de arte e cultura para adolescentes internos na Fundação CASA.Atua no coletivo Força Ativa e na Biblioteca Comunitária Solano Trindade.155https://acervo.socioambiental.org/sites/default/files/documents/03D00040.pdfhttps://www.casaum.org/20-escritores-e-escritoras-negras-para-ler-hoje-e-sempre/3. Planos de aula e materiais de orientação para aprática em diálogo com a Lei nº 10.639/03Confira, nesta seção, planos de aula e orientações para a prática, alinhadas àBase Nacional Comum Curricular, com propostas de atividades para trabalhar a leituraliterária e a escrita em suas aulas de Língua Portuguesa.A sequência didática “A escrita negra de Machado de Assis em seus contos ecrônicas”, de Esdras Soares, busca desenvolver habilidades de leitura e interpretaçãode texto observando a importância da temática racial nas obras deste autor.Já o plano de aula “Escritas de si em diálogo: um trabalho com o gênero diário”,de Eduarda Ribeiro e Lara Rocha, traz a escrita de Carolina Maria de Jesus em diálogocom a autora Françoise Egá para refletir sobre a experiência de mulheres negras.O projeto de escrita“Nossas vivências e as escrevivências de ConceiçãoEvaristo”, elaborado pelas professoras Elaine de Azevedo, Marilane Leite e Karla deSouza, discute a formação leitora entre o público jovem e apresenta atividadesconectadas com a cultura digital a partir de obras dessa autora.Em “Leitura literária: debatendo a violência nas escolas por meio da literatura”,as autoras Lara Rocha e Eduarda Ribeiro Rodrigues propõem um debate sobre aviolência no espaço escolar a partir da leitura do conto "Sons da fala", de Octavia Butler.E a sequência didática “Literatura afro-brasileira: proposta de trabalho com olivro Leite do Peito, de Geni Guimarães”, de Lara Rocha, traz uma interlocução entre aleitura literária e a educação para as relações étnico-raciais.1563.1A escrita negra de Machado de Assis em seus contos ecrônicasEsdras Soares[Público-alvo] Estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental. Pode ser adaptada para a1ª série do Ensino Médio.[Número de aulas] 15 a 20[Alinhamento à BNCC] 6 competências | 9 habilidadesIntroduçãoA obra de Machado de Assis é tão grande quanto o escritor e, por isso, existeminúmeras possibilidades de leitura e abordagem. Nesta sequência didática de leituraliterária, trabalhamos com contos e crônicas do autor a partir de uma perspectivanegra, ou seja, compreendemos que Machado de Assis é um escritor negro que compõeseus textos a partir desse ponto de vista. Para saber mais sobre isso, leia o texto“Machado de Assis, um escritor negro” (página 64 desta publicação).157Além disso, esta sequência didática foi construída tendo em vista os seguintespontos:a) Literatura afro-brasileira como uma possibilidade de promover uma educaçãoantirracista. Para aprofundar o conhecimento sobre a temática, confira o texto “Unindoo discurso à prática: não basta ser antirracista. É preciso ler o que as autoras e autoresnegros escrevem.”, (página 30 desta publicação) de Bel Santos Mayer.b) Prática de ensino de literatura e formação de leitores literários que mobilize aspectostécnicos, teóricos, críticos e historiográficos, bem como possibilite que tenham lugar asubjetividade dos leitores e a fruição estética. Sobre esse assunto, leia o texto “Aliteratura, os jovens e a escola: caminhos para a leitura literária e a formação deleitores” (disponível como Anexo I, na página 604 desta publicação), de Esdras Soares eLara Rocha.Recursos materiais necessários● Multimídia (projetor, sala de informática, televisão, etc.);● Cópias impressas dos textos sugeridos;● Celulares ou câmeras para gravação de vídeos.BNCCCompetências Específicas de Língua Portuguesa:158Competência específica nº 3Ler, escutar e produzir textos orais, escritos e multissemióticos que circulam emdiferentes campos de atuação e mídias, com compreensão, autonomia, fluência ecriticidade, de modo a se expressar e partilhar informações, experiências, ideias esentimentos, e continuar aprendendo.Competência específica nº 6Analisar informações, argumentos e opiniões manifestados em interações sociais e nosmeios de comunicação, posicionando-se ética e criticamente em relação a conteúdosdiscriminatórios que ferem direitos humanos e ambientais.Competência específica nº 7Reconhecer o texto como lugar de manifestação e negociação de sentidos, valores eideologias.Competência específica nº 8Selecionar textos e livros para leitura integral, de acordo com objetivos, interesses eprojetos pessoais (estudo, formação pessoal, entretenimento, pesquisa, trabalho etc.).Competência específica nº 9Envolver-se em práticas de leitura literária que possibilitem o desenvolvimento do sensoestético para fruição, valorizando a literatura e outras manifestações artístico-culturais159como formas de acesso às dimensões lúdicas, de imaginário e encantamento,reconhecendo o potencial transformador e humanizador da experiência com aliteratura.Competência específica nº 10Mobilizar práticas da cultura digital, diferentes linguagens, mídias e ferramentas digitaispara expandir as formas de produzir sentidos (nos processos de compreensão eprodução), aprender e refletir sobre o mundo e realizar diferentes projetos autorais.Práticas de linguagem / Objetos do conhecimento:● LeituraObjetos de Conhecimento:1. Reconstrução das condições de produção, circulação e recepção;2. Apreciação e réplica;3. Reconstrução da textualidade e compreensão dos efeitos de sentidoprovocados pelos usos de recursos linguísticos e multissemióticos;4. Adesão às práticas de leitura;5. Relação entre textos;6. Estratégias de leitura.Habilidades:160(EF69LP44) Inferir a presença de valores sociais, culturais e humanos e de diferentesvisões de mundo, em textos literários, reconhecendo nesses textos formas deestabelecer múltiplos olhares sobre as identidades, sociedades e culturas econsiderando a autoria e o contexto social e histórico de sua produção.(EF69LP46) Participar de práticas de compartilhamento de leitura/recepção de obrasliterárias/manifestações artísticas, como rodas de leitura, clubes de leitura, eventosde contação de histórias, de leituras dramáticas, de apresentações teatrais, musicaise de filmes, cineclubes, festivais de vídeo, saraus, slams, canais de booktubers, redessociais temáticas (de leitores, de cinéfilos, de música etc.), dentre outros, tecendo,quando possível, comentários de ordem estética e afetiva e justificando suasapreciações, escrevendo comentários e resenhas para jornais, blogs e redes sociais eutilizando formas de expressão das culturas juvenis, tais como, vlogs e podcastsculturais (literatura, cinema, teatro, música), playlists comentadas, fanfics, fanzines,e-zines, fanvídeos, fanclipes, posts em fanpages, trailer honesto, vídeo-minuto,dentre outras possibilidades de práticas de apreciação e de manifestação da culturade fãs.(EF69LP47) Analisar, em textos narrativos ficcionais, as diferentes formas decomposição próprias de cada gênero, os recursos coesivos que constroem apassagem do tempo e articulam suas partes, a escolha lexical típica de cada gêneropara a caracterização dos cenários e dos personagens e os efeitos de sentidodecorrentes dos tempos verbais, dos tipos de discurso, dos verbos de enunciação edas variedades linguísticas (no discurso direto, se houver) empregados, identificandoo enredo e o foco narrativo e percebendo como se estrutura a narrativa nosdiferentes gêneros e os efeitos de sentido decorrentes do foco narrativo típico decada gênero, da caracterização dos espaços físico e psicológico e dos tempos161cronológico e psicológico, das diferentes vozes no texto (do narrador, de personagensem discurso direto e indireto), do uso de pontuação expressiva, palavras e expressõesconotativas e processos figurativos e do uso de recursos linguístico-gramaticaispróprios a cada gênero narrativo.(EF69LP49) Mostrar-se interessado e envolvido pela leitura de livros de literatura epor outras produções culturais do campo e receptivo a textos que rompam com seuuniverso de expectativas, que representem um desafio em relação às suaspossibilidades atuais e suas experiências anteriores de leitura, apoiando-se nasmarcas linguísticas, em seu conhecimento sobre os gêneros e a temática e nasorientações dadas pelo professor.(EF89LP32) Analisar os efeitos de sentido decorrentes do uso de mecanismos deintertextualidade (referências, alusões, retomadas) entre os textos literários, entreesses textos literários e outras manifestações artísticas (cinema, teatro, artes visuaise midiáticas, música), quanto aos temas, personagens, estilos, autores etc., e entre otexto original e paródias, paráfrases, pastiches, trailer honesto, vídeos-minuto,vidding, dentre outros.(EF89LP33) Ler, de forma autônoma, e compreender – selecionando procedimentose estratégias de leitura adequados a diferentes objetivos e levando em contacaracterísticas dos gêneros e suportes – romances,contos contemporâneos,minicontos, fábulas contemporâneas, romances juvenis, biografias romanceadas,novelas, crônicas visuais, narrativas de ficção científica, narrativas de suspense,poemas de forma livre e fixa (como haicai), poema concreto, ciberpoema, dentreoutros, expressando avaliação sobre o texto lido e estabelecendo preferências porgêneros, temas, autores.162● Produção de textosObjeto de conhecimento:1. Estratégias de produçãoHabilidade:(EF69LP37) Produzir roteiros para elaboração de vídeos de diferentes tipos (vlogcientífico, vídeo-minuto, programa de rádio, podcasts) para divulgação deconhecimentos científicos e resultados de pesquisa, tendo em vista seu contexto deprodução, os elementos e a construção composicional dos roteiros.● Análise linguística/semióticaObjetos de Conhecimento:1. Recursos linguísticos e semióticos que operam nos textos pertencentes aosgêneros literários;2. Figuras de linguagem.Habilidades:(EF69LP54) Analisar os efeitos de sentido decorrentes da interação entre oselementos linguísticos e os recursos paralinguísticos e cinésicos, como as variações163no ritmo, as modulações no tom de voz, as pausas, as manipulações do estrato sonoroda linguagem, obtidos por meio da estrofação, das rimas e de figuras de linguagemcomo as aliterações, as assonâncias, as onomatopeias, dentre outras, a posturacorporal e a gestualidade, na declamação de poemas, apresentações musicais eteatrais, tanto em gêneros em prosa quanto nos gêneros poéticos, os efeitos desentido decorrentes do emprego de figuras de linguagem, tais como comparação,metáfora, personificação, metonímia, hipérbole, eufemismo, ironia, paradoxo eantítese e os efeitos de sentido decorrentes do emprego de palavras e expressõesdenotativas e conotativas (adjetivos, locuções adjetivas, orações subordinadasadjetivas etc.), que funcionam como modificadores, percebendo sua função nacaracterização dos espaços, tempos, personagens e ações próprios de cada gêneronarrativo.(EF89LP37) Analisar os efeitos de sentido do uso de figuras de linguagem comoironia, eufemismo, antítese, aliteração, assonância, dentre outras.Objetivos gerais:1. Reconhecer Machado de Assis como um dos pilares da literatura brasileira,destacando sua identidade racial negra e sua contribuição para o país.2. Desenvolver habilidades de leitura e interpretação, explorando textos dosgêneros crônica e conto de Machado de Assis e identificando suascaracterísticas.3. Analisar a produção literária de Machado de Assis, observando a importância datemática racial em suas obras e sua relevância para a compreensão do passadoe do presente.164Roteiro de atividades1ª Etapa: Conhecendo o maior escritor brasileiro (1 aula)Objetivos:● Reconhecer Machado de Assis como um dos maiores escritores brasileiros,destacando sua identidade racial negra.● Relacionar a biografia de Machado de Assis com a sua produção literária,ressaltando a relevância da temática racial em suas obras.Atividades:1. Recomendamos que você inicie o trabalho com um bate-papo com a turma e diga quevão ler textos do maior escritor brasileiro de todos os tempos, mas que primeiro terãoque adivinhar de quem se trata. Pode ser que algumas das pessoas já saibam queestamos falando de Machado de Assis. De uma maneira ou de outra, pergunte comoelas(es) imaginam que é esse escritor e quais são suas características físicas.Provavelmente a turma vai dizer que se trata de um homem de meia-idade ou idoso ebranco. Dialogue com as questões que surgirem e, quando sentir que a discussão e astentativas se esgotaram, mostre algumas imagens de Machado de Assis que revelem oseu fenótipo negro. Algumas sugestões:165Imagem 1:(Fonte: Arquivo Nacional – Domínio Público)Imagem 2:(Fonte: Projeto Machado de Assis Real)166Imagem 3:(Fonte:https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/93/Machado_de_Assis_Poss%C3%ADvel_%C3%9Altima_Foto_Revista_Argentina_Caras_y_Caretas_Janeiro_de_1908.png)Faça perguntas provocadoras para as(os) estudantes que as(os) levem a refletir sobre arazão de pensarem que o maior escritor brasileiro de todos os tempos era diferente dasfotos apresentadas. É uma oportunidade para refletir sobre o fato de haver maisvisibilidade de obras literárias publicadas por homens brancos, além de Machado tersido atravessado por um processo de branqueamento. Para saber mais sobre esseassunto, acesse o texto “Machado de Assis, um escritor negro”, indicado na introduçãodessa sequência didática e presente como Anexo I ao final desta publicação.167https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/93/Machado_de_Assis_Poss%C3%ADvel_%C3%9Altima_Foto_Revista_Argentina_Caras_y_Caretas_Janeiro_de_1908.pnghttps://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/93/Machado_de_Assis_Poss%C3%ADvel_%C3%9Altima_Foto_Revista_Argentina_Caras_y_Caretas_Janeiro_de_1908.png2. Em seguida, é possível apresentar a biografia de Machado de Assis. Para isso, vocêpode utilizar a biografia disponibilizada no Portal Literafro70 ou o vídeo do canalPhCôrtes, disponibilizado no link: https://youtu.be/XfpupVqIHn0.É importante não esquecer de ressaltar o pertencimento racial negro de Machado e oseu engajamento na questão racial, bem como destacar que essa temática faz parte dasua obra literária.2ª etapa: Como era o Brasil na época de Machado de Assis? (2 a 3 aulas)Objetivos:● Compreender o panorama histórico e social da segunda metade do século XIX noBrasil.● Reconhecer as diferentes formas de resistência à escravidão, destacandopersonagens importantes desse período.Atividades:1. Apresente uma breve contextualização do panorama histórico e social da segundametade do século XIX no Brasil, abordando a escravidão, as lutas por liberdade e aAbolição da Escravatura.70 Disponível no link:https://www.google.com/url?q=http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/163-machado-de-assis&sa=D&source=docs&ust=1727883564877942&usg=AOvVaw18_cJCWx2JwPiBDoSVTyil168http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/163-machado-de-assishttps://youtu.be/XfpupVqIHn0http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/163-machado-de-assishttp://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/163-machado-de-assisÉ importante destacar as várias formas de resistência à escravidão, como os quilombos,as revoltas e levantes, fugas, ataques a fazendas escravocratas e o MovimentoAbolicionista. Também recomendamos a apresentação de heroínas e heróis negros doperíodo, como Zumbi dos Palmares, Dandara dos Palmares, Luis Gama, Maria Felipa,Maria Firmina dos Reis, Francisco José do Nascimento, André Rebouças e José doPatrocínio. Isso pode ser feito em um trabalho interdisciplinar com professoras(es) deHistória.Também é viável, em parceria com professoras(es) de Sociologia, explorar correntescientíficas desse momento histórico, como a Teoria da evolução, o Determinismo e oPositivismo, bem como o Darwinismo racial e as Teorias raciais.Outra estratégia interessante é envolver a turma em um trabalho de pesquisa, em queela é convidada a fazer pesquisas na sala de informática, em seus celulares, nabiblioteca da escola ou como tarefa de casa.2. Explique a importância de compreender o contexto no qual Machado de Assis viveupara uma melhor compreensão de sua obra. Informe que nas próximas aulas serão lidostextos literários muito interessantes que de alguma maneira estão relacionados àsdiscussões feitas nesta etapa.Atenção: a escravidão é um tema fundamental de ser estudado na escola, mas énecessário fazer isso de maneira apropriada e sem estereótipos racistas,apoiando-se em estudos e pesquisas sérias. Além disso, é importante que a históriada população negra brasileira e mundial não seja resumida à escravidão, dor esofrimento. É necessário, também, abordá-la de maneira positiva, destacando suas169contribuições fundamentais à ciência, ao desenvolvimento das civilizações, arte,cultura,entre outros aspectos.3ª etapa: Leitura da primeira crônica - Explorando a ironia (2 a 3 aulas)Objetivos:● Explorar o gênero crônica, observando suas características e situação deprodução.● Utilizar estratégias de leitura, ampliando a compreensão dos textos.● Identificar a ironia presente na obra de Machado de Assis, levantandoconhecimentos prévios sobre essa figura de linguagem.Atividades:1. Nesta etapa, iniciaremos a leitura de textos selecionados de Machado de Assis,começando com o trecho de uma crônica de 1864. Antes da leitura, é importanterelembrar o contexto da escravidão abordado nas aulas anteriores. Como é a primeiravez, nesta sequência didática, que a turma lerá um texto literário, é interessante queseja feita uma leitura coletiva. É possível lançar mão da leitura protocolada, fazendopausas e perguntas durante a leitura, acionando conhecimentos prévios, antecipando oque virá a seguir e explicando o significado de palavras desconhecidas. Trata-se deuma excelente maneira de mediar a leitura e viabilizar que as(os) estudantes ampliem a170compreensão da crônica e se familiarizem com os textos machadianos. Devido ao temada escravidão, isso adquire ainda mais relevância, pois é uma oportunidade de refletiradequadamente acerca de assuntos complexos.2. Com o texto em mãos ou projetado, busque levantar os conhecimentos prévios daturma sobre o gênero crônica. Pergunte se já leram ou escreveram alguma, se sabemquais são suas características, em que lugar normalmente são publicadas e de quaisassuntos normalmente elas falam. Quando sentir que a turma está pronta, é possíveliniciar a leitura, buscando fazer articulações com o que as(os) estudantes levantaram ecompartilhar informações importantes que não tenham sido mencionadas.Crônica de 25 de julho de 1864, publicado no jornal Diário do Rio de JaneiroEra um leilão de escravos. Na fileira dos infelizes que estavam ali de mistura com osmóveis, havia uma pobre criancinha abrindo olhos espantados e ignorantes paratodos. Todos foram atraídos pela tenra idade e triste singeleza da pequena. Entreoutros, notei um indivíduo que, mais curioso que compadecido, conjeturava a meia vozo preço por que se venderia aquele semovente.Travamos conversa e fizemos conhecimento; quando ele soube que eu manejava aenxadinha com que agora revolvo estas terras do folhetim, deixou escapar dos lábiosuma exclamação:— “Ah!”Estava longe de conhecer o que havia neste — Ah! — tão misterioso e tão significativo.171Minutos depois começou o pregão da pequena. O meu indivíduo cobria os lanços, comincrível desespero, a ponto de pôr fora de combate todos os pretendentes, exceto umque lutou ainda por algum tempo, mas que afinal teve de ceder.O preço definitivo da desgraçadinha era fabuloso. Só o amor à humanidade podiaexplicar aquela luta da parte do meu novo conhecimento; não perdi de vista ocomprador, convencido de que iria disfarçadamente ao leiloeiro dizer-lhe que aquantia lançada era aplicada à liberdade da infeliz. Pus-me à espreita da virtude.O comprador não me desiludiu, porque, apenas começava a espreitá-lo, ouvi-lhe dizeralto e bom som:— “É para a liberdade!”O último combatente do leilão foi ao filantropo, apertou-lhe as mãos e disse-lhe:— “Eu tinha a mesma intenção”.O filantropo voltou-se para mim e pronunciou baixinho as seguintes palavras,acompanhadas de um sorriso:— “Não vá agora dizer lá na folha que eu pratiquei este ato de caridade”.Satisfiz religiosamente o dito do filantropo, mas nem assim me furtei à honra de ver ocaso publicado e comentado nos outros jornais.Deixo ao leitor a apreciação daquele airoso duelo de filantropia.3. Na crônica de 1864, publicada no Diário do Rio de Janeiro, Machado de Assisdescreve um leilão de escravizados, destacando a disputa entre dois homens por uma172jovem menina. O autor critica o egoísmo dos participantes, revelando a falta deverdadeira caridade, sugerindo que o “duelo” só aconteceu porque eles sabiam quehavia jornalistas presentes. Ele também aborda o papel da imprensa nessa situação,demonstrando preocupação com a forma como os eventos são retratados. No final, onarrador ressalta a importância da liberdade, convidando as(os) leitores a refletiremsobre essa questão. Como suas crônicas eram publicadas em jornais de grandecirculação, Machado expõe o embate entre a verdadeira e a falsa filantropia, utilizandoa imprensa como uma ferramenta para sensibilizar as pessoas e denunciar aqueles quese aproveitam de causas sociais para benefício pessoal.4. Uma das características mais marcantes de Machado de Assis é a ironia. É possívelque as(os) estudantes já tenham se dado conta disso e que essa constatação já tenhasido exposta durante a leitura. Assim, é importante explorar o uso desse recurso,considerando que essa é uma constante na obra do autor.Pergunte para a turma o que é ironia e anote na lousa tudo o que for surgindo, para queo sentido seja construído aos poucos. Convide as(os) estudantes a pensar em pessoasirônicas, como familiares, colegas ou pessoas famosas. A turma pode, e você também,dar exemplos de frases e expressões irônicas. Algumas sugestões: "Que coisa boa pegarum ônibus lotado. Eu adoro!”, “Com certeza, porque eu adoro acordar cedo", "Ah, sim,porque lavar a louça é a minha tarefa preferida”, “Que sorte! Quando chegou a minhavez de fazer o pedido, o pão acabou.”. Lembre a turma de que a ironia muitas vezes étransmitida por meio de uma expressão facial, tom de voz ou contexto, portanto, essesexemplos podem não parecer tão irônicos por escrito.173Por fim, você pode compartilhar a definição de ironia. Disponibilizamos uma sugestão aseguir:Ironia é uma figura de linguagem que consiste em expressar o contrário do quese quer realmente dizer, ou seja, falar uma coisa quando na verdade você querfalar outra, de maneira sutil e muitas vezes divertida. Pode ser utilizada paracriticar, ridicularizar ou provocar reflexão sobre determinado assunto. A ironiapode ser utilizada tanto de forma escrita quanto falada, e é comumenteencontrada em textos literários, piadas e conversas do dia a dia.5. Com o conceito de ironia compreendido, é possível voltar à crônica e perguntar àturma porque o narrador é irônico e quais são as marcas presentes no texto. É umaoportunidade para explicar que a ironia é bastante presente nos textos de Machado deAssis e que, inclusive, ele a utiliza para criticar a escravidão e a hipocrisia das classesdominantes de maneira bastante sofisticada. Na obra desse autor, é como se a ironiaexpressasse duas realidades: uma que é falada literalmente e outra que está nasentrelinhas, de maneira mais ou menos explícita, portanto precisa ser decifrada ecompreendida. Um ótimo exemplo disso é a última frase do texto, porque é como se onarrador nos olhasse e desse uma piscada ao dizer “Deixo ao leitor a apreciaçãodaquele airoso duelo de filantropia”.6. A própria turma pode comparar como seria a crônica se Machado não utilizasse aironia, discutindo as diferenças e o impacto. Por exemplo: “O autor falaria que aspessoas que participaram do leilão, na verdade, não estavam preocupadas com aliberdade da criança, mas apenas queriam aparecer no jornal como pessoas muitoboas”. Esse exercício serve tanto para o aprofundamento dessa figura de linguagemquanto para maior compreensão dos sentidos do texto.174Saiba mais:● Leitura protocoladaLeia o artigo “Ensinar leitura lendo” (disponível como Anexo II, na página 615 destapublicação) e conheça essa estratégia que pode contribuir para o desenvolvimento daprática leitora de sua turma.● IroniaAssista ao vídeo “O que é ironia e como funciona” para aprofundar seusconhecimentos sobre essa figura de linguagem, disponível no link:https://youtu.be/YQDjQBhc_zMOutras possibilidades:● Caso você planeje fazer um trabalho mais focado no gênero crônica, há umótimo textodo próprio Machado para incluir: “O nascimento da crônica”71.● Considere propor que a turma crie diários de leitura, um excelente recurso paraformação de leitoras(es) autônomas(os) e que pode contribuir comexperiências bastante significativas com a literatura. Saiba mais no artigo“Diário de leituras: caminhos de mediação do texto literário no cotidianoescolar” (disponível como Anexo III, na página 629 desta publicação), de MariaCoelho Gomes.71 Disponível no linkhttps://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4028654/mod_folder/content/0/O%20NASCIMENTO%20DA%20CR%C3%94NICA%20Machado%20de%20Assis.pdf.175https://youtu.be/YQDjQBhc_zMhttps://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4028654/mod_folder/content/0/O%20NASCIMENTO%20DA%20CR%C3%94NICA%20Machado%20de%20Assis.pdfhttps://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4028654/mod_folder/content/0/O%20NASCIMENTO%20DA%20CR%C3%94NICA%20Machado%20de%20Assis.pdfhttps://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4028654/mod_folder/content/0/O%20NASCIMENTO%20DA%20CR%C3%94NICA%20Machado%20de%20Assis.pdf4ª etapa: Mergulhando nas crônicas de Machado de Assis (3 a 4 aulas)Objetivos:● Explorar o gênero crônica, observando suas características e situação deprodução.● Relacionar as crônicas de Machado de Assis ao contexto histórico do século XIX,destacando a Abolição e o Pós-abolição.● Compreender o uso de pseudônimos por Machado de Assis, refletindo sobre aspossíveis razões motivadoras dessa prática.Atividades:1. Nesta etapa, vamos ler mais uma crônica que expõe a hipocrisia e a falsabenevolência das classes dominantes daquele momento histórico, assim como a crônicaanterior. O texto foi publicado em 19 de maio de 1888, poucos dias após a Abolição daEscravatura.2. Diferente da proposta da etapa anterior, inicialmente as(os) estudantes podem ler acrônica de maneira individual para depois lê-la coletivamente. É recomendável criar umglossário colaborativo, que pode ser registrado na lousa, nos cadernos ou de maneiradigital.3. Antes ou depois da leitura, é possível explorar ainda mais a situação de produção dogênero crônica no século XIX: trata-se de textos que eram publicados em jornais, oprincipal meio de comunicação da época e muito presente entre a população letrada.176Aqui, há uma oportunidade de chamar a atenção sobre a diferença com os dias atuais,em que crônicas são publicadas em suportes variados, como blogs, jornais impressos edigitais, revistas, livros e redes sociais.Compartilhe com as(os) estudantes que Machado de Assis utilizava esses textos paraestar mais próximo de suas(seus) leitoras(es) e isso atendia a um projeto antigo doautor de colaborar com o debate público e estimular o envolvimento da população coma política. Tendo isso em vista, é possível buscar essas marcas em suas crônicas.Crônica de 19 de maio de 1888, publicado no jornal Gazeta de NotíciasBons dias!Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post factum, depois do gatomorto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro senecessário for, que toda a história desta Lei de 13 de Maio estava por mim prevista,tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar ummolecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo eranada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outromelhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três(anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-meeu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as idéias pregadaspor Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; queentendia a que a nação inteira devia acompanhar as mesmas idéias e imitar o meu177exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens nãopodiam roubar sem pecado.Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veioabraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegoude outra taça, e pediu à ilustre assembléia que correspondesse ao ato queacabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outrodiscurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidosapanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite,recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que aóleo.No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:— Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida etens mais um ordenado, um ordenado que...— Oh! meu senhô! fico.— ... Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tucresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hojeestás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos...— Artura não qué dizê nada, não, senhô...— Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que agalinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.— Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta comoito. Oito ou sete.178Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, porme não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que opeteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido porum título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estadosnaturais, quase divinos.Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí para cá, tenho-lhe despedido algunspontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamofilho do Diabo; coisas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!)creio que até alegre.O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meuseleitores, direi que, antes, muito antes de abolição legal, já eu, em casa, namodéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a gente quedele teve notícia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar,(simples suposição) é então professor de filosofia no Rio das Cobras; que oshomens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem àlei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digamos poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar ajustiça na terra, para satisfação do Céu.Boas noites.4. Em boa parte das suas crônicas, Machado de Assis retrata os tipos sociais influentesda época. Isso também se aplica à crônica acima, em que o narrador parece terrelações sociais privilegiadas e deseja ser deputado. Assim como já foi visto antes, onarrador desta história é cínico e busca fama e reconhecimento.179É importante destacar que, após o fim da escravidão, a população liberta não recebeuapoio do governo para se integrar ao mercado de trabalho e à sociedade, conformeaparece durante a “negociação” entre o senhor de escravos e Pancrácio. Para que aturma tenha dimensão do quão pouco valia 6 mil-réis na época, uma camisa custavacerca de 3 mil-réis e o aluguel de uma casa comum custava por volta de 35 mil-réis pormês (GLEDSON, 1990). Essa é uma oportunidade adicional para estudar de forma maisdetalhada o contexto histórico e social daquele período, sobretudo o pós-abolição.Também é importante destacar que a escolha do nome “Pancrácio” é repleta designificados, conforme aponta Eduardo de Assis Duarte (2009, p. 51-52): “O nome doescravo remete ao adolescente Pancrácio, um dos mártires e primeiros santos docatolicismo, torturado e decapitado no dia 12 de maio (!) do ano 304, por ordem doimperador Diocleciano. Na Espanha, São Francisco Pancrácio é considerado o padroeirodos trabalhadores. O campo semântico do nome está aindavinculado ao substantivogrego 'pankration', que designava uma espécie de luta livre, considerada a modalidademais violenta do atletismo grego, em que se permitia o uso de mãos e pés a fim devencer o adversário. Escusado dizer que, em sua conformação fonética no português, onome está em consonância com “pancada”... Sua escolha, portanto, nada tem de casualou inocente”.5. Após a leitura, peça para que as(os) estudantes compartilhem com o restante daturma o que sentiram ao ler a crônica: É engraçada? Sentiram-se revoltados com a“cara de pau” do narrador? Como perceberam que o narrador diz justamente ocontrário do que diz defender? Perceberam a ironia? Como ela aparece? Quais são as180marcas presentes no texto? Acontece algo semelhante hoje em dia? Caso vocês tenhamorganizado um diário de leitura, também é possível registrar esses comentários nele.6. Por fim, é relevante explicar para a turma que Machado, assim como outros escritorese jornalistas do período, usavam pseudônimos para assinar suas crônicas. Explique oque é esse recurso e provoque a sala para que levantem hipóteses sobre a razão de oescritor assinar suas crônicas com outros nomes. É interessante que a turma percebaque um dos motivos para Machado fazer isso é que era uma maneira de se proteger depossíveis ataques e represálias, pois era uma atitude bastante arriscada um homemnegro criticar e ridicularizar escravocratas.7. Se houver tempo, é possível ler e discutir outras crônicas de Machado. Algumassugestões:● Crônica de 15 de junho de 187772;● Crônica de 11 de maio de 188873.Outras possibilidades:As crônicas lidas aqui mostram narradores cínicos e hipócritas, assim como onarrador do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas. Assim, pode ser muitointeressante ler esses textos em conjunto, estabelecendo relações.73 Disponível no link https://machadodeassis.ufsc.br/obras/cronicas/CRONICA,%20Bons%20dias,%201888.htm.72 Disponível do linkhttps://machadodeassis.ufsc.br/obras/cronicas/CRONICA,%20Historia%20de%20quinze%20dias,%201876.htm#c15_06_1877.181https://machadodeassis.ufsc.br/obras/cronicas/CRONICA,%20Historia%20de%20quinze%20dias,%201876.htm#c15_06_1877https://machadodeassis.ufsc.br/obras/cronicas/CRONICA,%20Bons%20dias,%201888.htmhttps://machadodeassis.ufsc.br/obras/cronicas/CRONICA,%20Bons%20dias,%201888.htmhttps://machadodeassis.ufsc.br/obras/cronicas/CRONICA,%20Historia%20de%20quinze%20dias,%201876.htm#c15_06_1877https://machadodeassis.ufsc.br/obras/cronicas/CRONICA,%20Historia%20de%20quinze%20dias,%201876.htm#c15_06_18775ª etapa: Explorando os contos de Machado de Assis (3 a 4 aulas)Objetivos:● Explorar o gênero conto, observando suas características e situação deprodução.● Analisar contos de Machado de Assis, destacando suas temáticas e denúnciassociais.● Discutir os contos lidos em grupo, compartilhando percepções, dúvidas ereflexões sobre a relação desses textos com a atualidade.● Compreender o fenômeno da atemporalidade dos textos literários e suarelevância na contemporaneidade.Atividades:1. Após a leitura das crônicas, é hora de conhecer alguns contos de Machado de Assis.Antes disso, é interessante refletir sobre as características desse gênero e levantar osconhecimentos prévios das(os) estudantes. Como apoio, utilize o vídeo a seguir,bastante oportuno porque explora as diferenças entre conto e crônica:https://youtu.be/cGJ7pcgr0C8.2. Iniciaremos a leitura com um dos contos mais conhecidos de Machado, “O caso davara”, publicado em 1899. Como se trata de um texto mais extenso, faremos apenas aleitura individual.182https://youtu.be/cGJ7pcgr0C8O caso da varaDamião fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto.Não sei bem o ano; foi antes de 1850. Passados alguns minutos parou vexado; nãocontava com o efeito que produzia nos olhos da outra gente aquele seminaristaque ia espantado, medroso, fugitivo. Desconhecia as ruas, andava e desandava;finalmente parou. Para onde iria? Para casa, não; lá estava o pai que o devolveriaao seminário, depois de um bom castigo. Não assentara no ponto de refúgio,porque a saída estava determinada para mais tarde; uma circunstância fortuita aapressou. Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, João Carneiro, mas o padrinhoera um moleirão sem vontade, que por si só não faria cousa útil. Foi ele que o levouao seminário e o apresentou ao reitor:– Trago-lhe o grande homem que há de ser, disse ele ao reitor.– Venha, acudiu este, venha o grande homem, contanto que seja também humildee bom. A verdadeira grandeza é chã. Moço...Tal foi a entrada. Pouco tempo depois fugiu o rapaz ao seminário. Aqui o vemosagora na rua, espantado, incerto, sem atinar com refúgio nem conselho; percorreude memória as casas de parentes e amigos, sem se fixar em nenhuma. De repente,exclamou:– Vou pegar-me com Sinhá Rita! Ela manda chamar meu padrinho, diz-lhe quequer que eu saia do seminário... Talvez assim...Sinhá Rita era uma viúva, querida de João Carneiro; Damião tinha umas ideiasvagas dessa situação e tratou de a aproveitar. Onde morava? Estava tãoatordoado, que só daí a alguns minutos é que lhe acudiu a casa; era no Largo doCapim.– Santo nome de Jesus! Que é isto? bradou Sinhá Rita, sentando-se na marquesa,onde estava reclinada.183Damião acabava de entrar espavorido; no momento de chegar à casa, vira passarum padre, e deu um empurrão à porta, que por fortuna não estava fechada a chavenem ferrolho. Depois de entrar espiou pela rótula, a ver o padre. Este não deu porele e ia andando.– Mas que é isto, Sr. Damião? bradou novamente a dona da casa, que só agora oconhecera. Que vem fazer aqui!Damião, trêmulo, mal podendo falar, disse que não tivesse medo, não era nada; iaexplicar tudo.– Descanse, e explique-se.– Já lhe digo; não pratiquei nenhum crime, isso juro, mas espere.Sinhá Rita olhava para ele espantada, e todas as crias, de casa, e de fora, queestavam sentadas em volta da sala, diante das suas almofadas de renda, todasfizeram parar os bilros e as mãos. Sinhá Rita vivia principalmente de ensinar afazer renda, crivo e bordado. Enquanto o rapaz tomava fôlego, ordenou àspequenas que trabalhassem, e esperou. Afinal, Damião contou tudo, o desgostoque lhe dava o seminário; estava certo de que não podia ser bom padre; falou compaixão, pediu-lhe que o salvasse.– Como assim? Não posso nada.– Pode, querendo.– Não, replicou ela abanando a cabeça, não me meto em negócios de sua família,que mal conheço; e então seu pai, que dizem que é zangado!Damião viu-se perdido. Ajoelhou-se-lhe aos pés, beijou-lhe as mãos, desesperado.– Pode muito, Sinhá Rita; peço-lhe pelo amor de Deus, pelo que a senhora tiver demais sagrado, por alma de seu marido, salve-me da morte, porque eu mato-me, sevoltar para aquela casa.Sinhá Rita, lisonjeada com as súplicas do moço, tentou chamá-lo a outrossentimentos. A vida de padre era santa e bonita, disse-lhe ela; o tempo lhe184mostraria que era melhor vencer as repugnâncias e um dia... Não nada, nunca!redarguia Damião, abanando a cabeça e beijando-lhe as mãos, e repetia que era asua morte. Sinhá Rita hesitou ainda muito tempo; afinal perguntou-lhe por que nãoia ter com o padrinho.– Meu padrinho? Esse é ainda pior que papai; não me atende, duvido que atenda aninguém...– Não atende? interrompeu Sinhá Rita ferida em seus brios. Ora, eu lhe mostro seatende ou não...Chamou um moleque e bradou-lhe que fosse à casa do Sr. João Carneiro chamá-lo,já e já; e se não estivesse em casa, perguntasse onde podia ser encontrado, ecorresse a dizer-lhe que precisava muito de lhe falar imediatamente.– Anda, moleque.Damião suspirou alto e triste. Ela, para mascarar a autoridade com que deraaquelas ordens, explicou ao moço que o Sr. João Carneiro fora amigo do marido earranjara-lhe algumas crias para ensinar. Depois, como ele continuasse triste,encostado a um portal,puxou-lhe o nariz, rindo:– Ande lá, seu padreco, descanse que tudo se há de arranjar.Sinhá Rita tinha quarenta anos na certidão de batismo, e vinte e sete nos olhos.Era apessoada, viva, patusca, amiga de rir; mas, quando convinha, brava comodiabo. Quis alegrar o rapaz, e, apesar da situação, não lhe custou muito. Dentro depouco, ambos eles riam, ela contava-lhe anedotas, e pedia-lhe outras, que elereferia com singular graça. Uma destas, estúrdia, obrigada a trejeitos, fez rir auma das crias de Sinhá Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar omoço. Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marquesa, e ameaçou-a:– Lucrécia, olha a vara!A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era umaadvertência; se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o185castigo do costume. Damião olhou para a pequena; era uma negrinha, magricela,um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mãoesquerda. Contava onze anos. Damião reparou que tossia, mas para dentro,surdamente, a fim de não interromper a conversação. Teve pena da negrinha, eresolveu apadrinhá-la, se não acabasse a tarefa. Sinhá Rita não lhe negaria operdão... Demais, ela rira por achar-lhe graça; a culpa era sua, se há culpa em terchiste.Nisto, chegou João Carneiro. Empalideceu quando viu ali o afilhado, e olhou paraSinhá Rita, que não gastou tempo com preâmbulos. Disse-lhe que era preciso tiraro moço do seminário, que ele não tinha vocação para a vida eclesiástica, e antesum padre de menos que um padre ruim. Cá fora também se podia amar e servir aNosso Senhor. João Carneiro, assombrado, não achou que replicar durante osprimeiros minutos; afinal, abriu a boca e repreendeu o afilhado por ter vindoincomodar "pessoas estranhas", e em seguida afirmou que o castigaria.– Qual castigar, qual nada! interrompeu Sinhá Rita. Castigar por quê? Vá, vá falar aseu compadre.– Não afianço nada, não creio que seja possível...– Há de ser possível, afianço eu. Se o senhor quiser, continuou ela com certo tominsinuativo, tudo se há de arranjar. Peça-lhe muito, que ele cede. Ande, SenhorJoão Carneiro, seu afilhado não volta para o seminário; digo-lhe que não volta...– Mas, minha senhora...– Vá, vá.João Carneiro não se animava a sair, nem podia ficar. Estava entre um puxar deforças opostas. Não lhe importava, em suma, que o rapaz acabasse clérigo,advogado ou médico, ou outra qualquer cousa, vadio que fosse; mas o pior é quelhe cometiam uma luta ingente com os sentimentos mais íntimos do compadre, semcerteza do resultado; e, se este fosse negativo, outra luta com Sinhá Rita, cuja186última palavra era ameaçadora: "digo-lhe que ele não volta". Tinha de haver porforça um escândalo. João Carneiro estava com a pupila desvairada, a pálpebratrêmula, o peito ofegante. Os olhares que deitava a Sinhá Rita eram de súplica,mesclados de um tênue raio de censura. Por que lhe não pedia outra cousa? Porque lhe não ordenava que fosse a pé, debaixo de chuva, à Tijuca, ou Jacarepaguá?Mas logo persuadir ao compadre que mudasse a carreira do filho... Conhecia ovelho; era capaz de lhe quebrar uma jarra na cara. Ah! Se o rapaz caísse ali, derepente, apoplético, morto! Era uma solução — cruel, é certo, mas definitiva.– Então? Insistiu Sinhá Rita.Ele fez-lhe um gesto de mão que esperasse. Coçava a barba, procurando umrecurso. Deus do céu! Um decreto do papa dissolvendo a Igreja, ou, pelo menos,extinguindo os seminários, faria acabar tudo em bem. João Carneiro voltaria paracasa e ia jogar os três-setes. Imaginai que o barbeiro de Napoleão eraencarregado de comandar a batalha de Austerlitz... Mas a Igreja continuava, osseminários continuavam, o afilhado continuava cosido à parede, olhos baixosesperando, sem solução apoplética.– Vá, vá, disse Sinhá Rita dando-lhe o chapéu e a bengala.Não teve remédio. O barbeiro meteu a navalha no estojo, travou da espada e saiu àcampanha. Damião respirou; exteriormente deixou-se estar na mesma, olhosfincados no chão, acabrunhado. Sinhá Rita puxou-lhe desta vez o queixo.– Ande jantar, deixe-se de melancolias.– A senhora crê que ele alcance alguma coisa?– Há de alcançar tudo, redarguiu Sinhá Rita cheia de si. Ande, que a sopa estáesfriando.Apesar do gênio galhofeiro de Sinhá Rita, e do seu próprio espírito leve, Damiãoesteve menos alegre ao jantar que na primeira parte do dia. Não fiava do caráter187mole do padrinho. Contudo, jantou bem; e, para o fim, voltou às pilhérias da manhã.A sobremesa, ouviu um rumor de gente na sala, e perguntou se o vinham prender.– Hão de ser as moças.Levantaram-se e passaram à sala. As moças eram cinco vizinhas que iam todas astardes tomar café com Sinhá Rita, e ali ficavam até o cair da noite.As discípulas, findo o jantar delas, tornaram às almofadas do trabalho. Sinhá Ritapresidia a todo esse mulherio de casa e de fora. O sussurro dos bilros e o palavreardas moças eram ecos tão mundanos, tão alheios à teologia e ao latim, que o rapazdeixou-se ir por eles e esqueceu o resto. Durante os primeiros minutos, aindahouve da parte das vizinhas certo acanhamento; mas passou depressa. Uma delascantou uma modinha, ao som da guitarra, tangida por Sinhá Rita, e a tarde foipassando depressa. Antes do fim, Sinhá Rita pediu a Damião que contasse certaanedota que lhe agradara muito. Era a tal que fizera rir Lucrécia.– Ande, senhor Damião, não se faça de rogado, que as moças querem ir embora.Vocês vão gostar muito.Damião não teve remédio senão obedecer. Malgrado o anúncio e a expectação,que serviam a diminuir o chiste e o efeito, a anedota acabou entre risadas dasmoças. Damião, contente de si, não esqueceu Lucrécia e olhou para ela, a ver serira também. Viu-a com a cabeça metida na almofada para acabar a tarefa. Nãoria; ou teria rido para dentro, como tossia.Saíram as vizinhas, e a tarde caiu de todo. A alma de Damião foi-se fazendotenebrosa, antes da noite. Que estaria acontecendo? De instante a instante, iaespiar pela rótula, e voltava cada vez mais desanimado. Nem sombra do padrinho.Com certeza, o pai fê-lo calar, mandou chamar dous negros, foi à polícia pedir umpedestre, e aí vinha pegá-lo à força e levá-lo ao seminário. Damião perguntou aSinhá Rita se a casa não teria saída pelos fundos; correu ao quintal e calculou quepodia saltar o muro. Quis ainda saber se haveria modo de fugir para a Rua da Vala,188ou se era melhor falar a algum vizinho que fizesse o favor de o receber. O pior eraa batina; se Sinhá Rita lhe pudesse arranjar um rodaque, uma sobrecasaca velha...Sinhá Rita dispunha justamente de um rodaque, lembrança ou esquecimento deJoão Carneiro.– Tenho um rodaque do meu defunto, disse ela, rindo; mas para que está comesses sustos? Tudo se há de arranjar, descanse.Afinal, à boca da noite, apareceu um escravo do padrinho, com uma carta paraSinhá Rita. O negócio ainda não estava composto; o pai ficou furioso e quis quebrartudo; bradou que não, senhor, que o peralta havia de ir para o seminário, ou entãometia-o no Aljube ou na presiganga. João Carneiro lutou muito para conseguir queo compadre não resolvesse logo, que dormisse a noite, e meditasse bem se eraconveniente dar à religião um sujeito tão rebelde e vicioso. Explicava na carta quefalou assim para melhor ganhar a causa. Não a tinha por ganha, mas no diaseguinte lá iria ver o homem, e teimar de novo. Concluía dizendo que o moço fossepara a casa dele.Damião acabou de ler a carta e olhou para Sinhá Rita. Não tenho outra tábua desalvação, pensou ele. Sinhá Rita mandou vir um tinteiro de chifre, e na meia folhada própria carta escreveu esta resposta: "Joãozinho, ou você salva o moço, oununca mais nos vemos". Fechou a carta com obreia, e deu-a ao escravo, para que alevasse depressa. Voltou a reanimar o seminarista, que estava outra vez no capuzda humildade e da consternação. Disse-lhe quesossegasse, que aquele negócioera agora dela.– Hão de ver para quanto presto! Não, que eu não sou de brincadeiras!Era a hora de recolher os trabalhos. Sinhá Rita examinou-os; todas as discípulastinham concluído a tarefa. Só Lucrécia estava ainda à almofada, meneando osbilros, já sem ver; Sinhá Rita chegou-se a ela, viu que a tarefa não estavaacabada, ficou furiosa, e agarrou-a por uma orelha.189– Ah! malandra!– Nhanhã, nhanhã! pelo amor de Deus! por Nossa Senhora que está no céu.– Malandra! Nossa Senhora não protege vadias!Lucrécia fez um esforço, soltou-se das mãos da senhora, e fugiu para dentro; asenhora foi atrás e agarrou-a.– Anda cá!– Minha senhora, me perdoe!– Não perdoo, não.E tornaram ambas à sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando epedindo; a outra dizendo que não, que a havia de castigar.– Onde está a vara?A vara estava à cabeceira da marquesa, do outro lado da sala. Sinhá Rita, nãoquerendo soltar a pequena, bradou ao seminarista:– Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor?Damião ficou frio… Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, tinhaJurado apadrinhar a pequena, que por causa dele, atrasara o trabalho...– Dê-me a vara, Sr. Damião!Damião chegou a caminhar na direção da marquesa. A negrinha pediu-lhe entãopor tudo o que houvesse mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso Senhor...– Me acuda, meu sinhô moço!Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, semlargar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-secompungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa,pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita.1903. No conto, acompanhamos a história de Damião, um jovem branco que foge de umseminário; Sinhá Rita, mulher branca que acolhe o rapaz em sua casa; e Lucrécia, umamenina negra escravizada.Embora a descrição da menina seja breve, as marcas de tortura evidenciam acrueldade de Sinhá Rita e as duras condições de vida da criança. Apesar disso,Lucrécia é capaz de rir e se divertir com a situação de Damião. O jovem, por sua vez, sesente culpado, pois sabe que está atrapalhando o ritmo de trabalho da menina. Osmomentos de descontração são interrompidos pelas ameaças de Sinhá Rita. Mesmosentido, receoso de perder o apoio de Sinhá Rita, Damião acaba entregando a vara paraa senhora, que a usa como instrumento de castigo para a menina. Por meio dospersonagens e de suas ações, Machado, mais uma vez, denuncia a crueldade daescravidão, as desigualdades sociais, o egoísmo e a hipocrisia das classes dominantes.Explore essas questões com a turma, instigando-os a trazerem novas leituras,percepções e sentimentos.4. Na próxima rodada de leitura, a turma poderá escolher qual conto gostaria de lerentre os três a seguir:● Mariana74;● Pai contra mãe75;● O espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana7676 Disponível no linkhttps://www.machadodeassis.ufsc.br/obras/contos/CONTO,%20Papeis%20Avulsos,%201882.htm#o_espelho_abaixo.75 Disponível no link http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000245.pdf.74 Disponível no linkhttps://www.machadodeassis.ufsc.br/obras/contos/avulsos/CONTO,%20Mariana,%201871.htm.191https://www.machadodeassis.ufsc.br/obras/contos/avulsos/CONTO,%20Mariana,%201871.htmhttp://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000245.pdfhttps://www.machadodeassis.ufsc.br/obras/contos/CONTO,%20Papeis%20Avulsos,%201882.htm#o_espelho_abaixohttps://www.machadodeassis.ufsc.br/obras/contos/CONTO,%20Papeis%20Avulsos,%201882.htm#o_espelho_abaixohttps://www.machadodeassis.ufsc.br/obras/contos/CONTO,%20Papeis%20Avulsos,%201882.htm#o_espelho_abaixohttp://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000245.pdfhttps://www.machadodeassis.ufsc.br/obras/contos/avulsos/CONTO,%20Mariana,%201871.htmCompartilhe com a turma os títulos de cada um dos contos, juntamente com um breveresumo, de maneira que as(os) estudantes se interessem pela leitura. A ideia é dividir asala em três grupos iguais, que chamaremos de “Grupo de Especialistas”, para quecada um deles leia um dos textos. Uma vez que os grupos estejam formados e todas aspessoas saibam qual texto vão ler, sugerimos a seguinte dinâmica:A. Cada estudante lerá um conto individualmente, de acordo com o seu grupo.Durante ou após a leitura, devem anotar a resposta para a seguinte perguntaprovocadora: “Qual é a relação desse texto com os dias atuais?".B. Após a leitura individual, as(os) estudantes deverão se reunir com seu Grupo deespecialistas para discutir partes do texto que não compreenderam bem,compartilhar os aspectos que mais chamaram a sua atenção e socializar asrespostas para a pergunta provocadora.C. Depois, o Grupo de especialistas deve discutir e escolher qual é a resposta quemais o representa, podendo até criar uma nova resposta a partir da discussãocoletiva. Em seguida, o grupo deve eleger uma dupla de representantes quedeverá apresentar um resumo do conto e sua relação com os dias atuais para aturma inteira.D. Por fim, organize as apresentações das duplas de representantes.A proposta de relacionar textos antigos com questões atuais é uma maneira deoportunizar uma reflexão subjetiva sobre o sentido dos textos para cada indivíduo, bemcomo reconhecer o caráter atemporal dos textos literários. Essa proposta também estápresente na última etapa, em que a turma será convidada a produzir um vídeo para asredes sociais.192Saiba mais:● Assista ao vídeo “O que é um conto, como surgiu e dicas para escrever”77 parasaber mais sobre as características dos contos contemporâneos e dicas para aescrita de um bom texto.Outras possibilidades:● Experimente explorar as conexões entre os contos de Machado de Assis eoutras obras literárias de autoria negra do século XIX, como Maria Firmina dosReis, Luiz Gama e Cruz e Sousa, assim como escritoras e escritores negroscontemporâneos.● Também é muito interessante e potente promover o diálogo entre os contos deMachado de Assis e outras produções contemporâneas, como a música e asartes visuais. Para se inspirar, assista ao vídeo78 em que um educador narrasua experiência ao relacionar Machado de Assis, Racionais MC’s e Tarsila doAmaral.6ª etapa: Machado de Assis nas redes sociais! (4 a 5 aulas)Objetivos:● Construir sentidos para textos de Machado de Assis, refletindo sobre a relaçãodeles com os dias atuais.78 Disponível no link https://youtu.be/JETajePH8O8?t=431.77 Disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=Z7XEnhVJdRk&t=1s.193https://www.youtube.com/watch?v=Z7XEnhVJdRk&t=1shttps://www.youtube.com/watch?v=Z7XEnhVJdRk&t=1shttps://youtu.be/JETajePH8O8?t=431https://youtu.be/JETajePH8O8?t=431https://www.youtube.com/watch?v=Z7XEnhVJdRk&t=1s● Criar vídeos curtos para serem publicados nas redes sociais, explorandorecursos digitais e tecnológicos.● Compartilhar as aprendizagens, estimulando outras pessoas a lerem a obra deMachado de Assis.Atividades:1. Como forma de encerrar esta sequência didática, propomos que a turma crie vídeoscurtos para serem publicados em plataformas como o TikTok ou o Instagram. A ideia éque os vídeos abordem Machado de Assis e sua relevância atual. Essa é uma maneirade construir sentidos a textos do século XIX, que são lidos por estudantes atualmente.Além disso, é uma ótima forma de celebrar o término do trabalho, compartilhar oaprendizado e despertar o interesse de outras pessoas pelos textos de Machado.Inicialmente, divida a sala em grupos de 4 a 6 estudantes. Explique a proposta eescolham se gostariam de gravar vídeos para o TikTok ou para o Reels do Instagram. Emseguida, mostre alguns vídeos selecionados que tenham relação com o universoeducacional para inspirar as(os) estudantes. Algumas sugestões de perfis e hashtags:● Simone Porfiria79;● Sandro Curió80;● Débora Aladim81;81 Disponível no link https://www.tiktok.com/@dedaaladim.80 Disponível no link https://www.tiktok.com/@matematicasandrocurio.79 Disponível no link https://www.tiktok.com/@simoneporfiria.194https://www.tiktok.com/@simoneporfiria?https://www.tiktok.com/@matematicasandrocurio?https://www.tiktok.com/@dedaaladim?https://www.tiktok.com/@dedaaladimhttps://www.tiktok.com/@matematicasandrocuriohttps://www.tiktok.com/@simoneporfiria● #aprendanotiktok82;● #estudandotiktok83;● #estudos84.2. É possível que você encontre bastante heterogeneidade na turma, havendoestudantes que não estejam familiarizados ou não tenham acesso a esses recursos,enquanto outros possam utilizá-los com facilidade, interagindo e produzindo conteúdocom frequência. Assim, as(os) estudantes que têm mais facilidade podem oferecer umaoficina sobre o TikTok/Instagram, explicando o funcionamento dessas redes e dandodicas para a criação de vídeos interessantes.3. O próximo passo é compartilhar o tema que deve orientar as produções. O objetivo égravar vídeos sobre Machado de Assis e a sua relevância nos dias atuais. Para isso,sugerimos a seguinte pergunta mobilizadora: “Qual é a relação dos textos de Machadode Assis com hoje em dia?”. Entre os muitos caminhos que as(os) estudantes podemescolher, destacamos alguns:○ Resumir e apresentar os textos.○ Encenar como seria uma história de Machado de Assis se passando naatualidade.○ Relacionar textos do autor a questões ou situações atuais. Por exemplo, comoMachado de Assis denunciaria o racismo nos dias de hoje?○ Explorar a faceta crítica do autor em relação ao racismo.○ Realizar uma entrevista fictícia com um dos personagens dos textos lidos.84 Disponível no link https://www.tiktok.com/tag/estudos.83 Disponível no link https://www.tiktok.com/tag/estudandotiktok.82 Disponível no link https://www.tiktok.com/tag/aprendanotiktok.195https://www.tiktok.com/tag/aprendanotiktokhttps://www.tiktok.com/tag/estudandotiktokhttps://www.tiktok.com/tag/estudoshttps://www.tiktok.com/tag/estudoshttps://www.tiktok.com/tag/estudandotiktokhttps://www.tiktok.com/tag/aprendanotiktok○ Falar sobre características da escrita de Machado, como a ironia, por exemplo.Atenção: como os textos lidos na sequência didática tratam de escravidão, énecessária uma mediação bastante atenta e ativa para evitar comportamentosracistas, reprodução de estereótipos e bullying. Por exemplo, caso os grupos desejeminterpretar personagens dos contos e crônicas, é preciso ter cuidado para queestudantes negras(os) não sejam colocados para interpretar escravizados, pois seriauma situação degradante e desnecessária, podendo causar grande sofrimento.4. Com os grupos formados, agora é necessário criar roteiros simples para a gravaçãodos vídeos. Se necessário, disponibilizamos um modelo abaixo.Roteiro do vídeoTemaDuraçãoFormato (entrevista, encenação, etc.)ParticipantesTópicos abordadosUma possibilidade de enriquecer a construção do roteiro consiste em propor que cadagrupo apresente a primeira versão para outro, recolher sugestões e aprimorá-lo combase nas contribuições das(os) colegas.1965. Com os roteiros finalizados em mãos, os grupos passam à etapa de gravação dosvídeos. Como são curtos, eles podem refazer a gravação algumas vezes, se necessário,até alcançarem o resultado desejado. Por fim, é chegada a hora de publicar. Vocêspodem criar um perfil no TikTok/Instagram para o projeto e publicar todas as produçõesnele, ou as(os) estudantes podem utilizar suas próprias contas e usar uma mesmahashtag para identificar os vídeos.6. Agora é só divulgar na escola e nas redes, acompanhando as curtidas, comentários einterações!Dica:Para avaliar as produções, é possível criar uma rubrica com critérios que sejamconstruídos coletivamente antes do início da produção dos vídeos. Saiba mais napágina do Instagram Na aula de português85.Outras possibilidades:Se preferir organizar um trabalho mais focado em produção textual, é possível daruma profundidade maior no processo de escrita dos roteiros.Uma alternativa interessante é organizar a produção de podcasts. Saiba mais noslinks abaixo:85 Disponível no link https://www.instagram.com/p/CESTlXSntb2/?utm_source=ig_web_copy_link.197https://www.instagram.com/p/CESTlXSntb2/?utm_source=ig_web_copy_linkhttps://www.instagram.com/p/CESTlXSntb2/?utm_source=ig_web_copy_link● Planejando um podcast a partir do conto clássico - Nova Escola86;● Gravando podcasts a partir do conto clássico - Nova Escola87;● Edição de podcasts a partir do conto clássico - Nova Escola88.Referências bibliográficasBRASIL-MEC/SEPPIR. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das RelaçõesÉtnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Brasília:MEC, 2004.DUARTE, Eduardo de Assis. Estratégias de Caramujo. In: Machado de Assis:afro-descendente - escritos de caramujo [antologia]. Rio de Janeiro / Belo Horizonte:Pallas / Crisálida, 2009.GLEDSON, John. Introdução. In: Bons Dias!: crônicas (1888-1889). São Paulo: HUCITEC:Editora da Unicamp, 1990.ROUXEL, Annie. A tensão entre utilizar e interpretar na recepção de obras literárias emsala de aula: reflexão sobre uma inversão de valores ao longo da escolaridade. In:Leitura subjetiva e ensino de literatura. São Paulo: Alameda, 2013, p. 151-164.88 Disponível no linkhttps://novaescola.org.br/planos-de-aula/fundamental/9ano/lingua-portuguesa/edicao-de-podcasts-a-partir-do-conto-classico/4291.87 Disponível no linkhttps://novaescola.org.br/planos-de-aula/fundamental/9ano/lingua-portuguesa/gravando-podcasts-a-partir-do-conto-classico/4292.86 Disponível no linkhttps://novaescola.org.br/planos-de-aula/fundamental/9ano/lingua-portuguesa/planejando-um-podcast-a-partir-do-conto-classico/4293.198https://novaescola.org.br/planos-de-aula/fundamental/9ano/lingua-portuguesa/planejando-um-podcast-a-partir-do-conto-classico/4293https://novaescola.org.br/planos-de-aula/fundamental/9ano/lingua-portuguesa/gravando-podcasts-a-partir-do-conto-classico/4292https://novaescola.org.br/planos-de-aula/fundamental/9ano/lingua-portuguesa/edicao-de-podcasts-a-partir-do-conto-classico/4291https://novaescola.org.br/planos-de-aula/fundamental/9ano/lingua-portuguesa/edicao-de-podcasts-a-partir-do-conto-classico/4291https://novaescola.org.br/planos-de-aula/fundamental/9ano/lingua-portuguesa/edicao-de-podcasts-a-partir-do-conto-classico/4291https://novaescola.org.br/planos-de-aula/fundamental/9ano/lingua-portuguesa/gravando-podcasts-a-partir-do-conto-classico/4292https://novaescola.org.br/planos-de-aula/fundamental/9ano/lingua-portuguesa/gravando-podcasts-a-partir-do-conto-classico/4292https://novaescola.org.br/planos-de-aula/fundamental/9ano/lingua-portuguesa/planejando-um-podcast-a-partir-do-conto-classico/4293https://novaescola.org.br/planos-de-aula/fundamental/9ano/lingua-portuguesa/planejando-um-podcast-a-partir-do-conto-classico/4293Sobre o autorEsdras Soares é mestre, licenciado e bacharel em Letras (USP), com pesquisa sobreliteratura e educação das relações étnico-raciais. Contato: esdras.soa@gmail.com.1993.2Escritas de si em diálogo: um trabalho com o gênerodiárioLara Rocha e Eduarda Ribeiro[Público-alvo] Estudantes do Ensino Fundamental – Anos Finais, adaptável para oEnsino Médio.[Duração] 5 aulas[Alinhamento à BNCC] 2 Competências | 4 HabilidadesIntroduçãoCarolina: uma história a ser contadaNos últimos anos, a trajetória de Carolina Maria de Jesus teve granderepercussão, tanto no setor educacional — várias escolas, cursinhos populares emovimentos sociais receberam seu nome, além do aumento da discussão em torno dasua obra em sala de aula — quanto no cultural. A exposição “Carolina Maria de Jesus:um Brasil para os brasileiros”89, foi a mostra mais visitada no Instituto Moreira Salles em2021. Em 2022 a escritora foi tema do samba-enredo da Colorado do Brás90.90 Disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=3TBz8w8OyRI&t=4s.89 Disponível no link https://ims.com.br/tour-virtual-exposicao-carolina-maria-de-jesus-ims-paulista/.objetivos para os quais foisistematizada: garantir o direito de estudantes negras(os), indígenas e quilombolas deconhecerem as suas histórias e se orgulharem dela e colaborar para a mudança dacultura, quanto a transformar crenças, perspectivas, comportamentos e práticasatravessadas pelo racismo. Aqui, eu compartilho com vocês seis pontos que sãoresultado desse acúmulo de vivências e que, se observados, podem nos ajudar afortalecer a Lei 10.639 e avançar de forma qualificada no seu cumprimento:1. Todas(os) e cada uma(um) de nós precisamos nos compreender como partedo tema “educação para as relações étnico-raciais”. Enquanto tratamos otema como algo externo a nós, não fazemos a mudança mais importante dentrodeste processo: a mudança em nós mesmos. Enquanto eu não compreendi que oracismo habita a minha psique e que ele faz parte do inconsciente coletivo,porque fomos subjetivados dentro de uma cultura profundamente racista, eu não16consegui promover propostas pedagógicas qualificadas. Promover uma educaçãoantirracista envolve ter a coragem de nos fazer as seguintes perguntas: “onde euescondo o racismo que foi imposto à minha subjetividade?”; “como o racismoatinge a minha vida como pessoa negra?”; “como o racismo define os meuspensamentos, as minhas práticas e crenças como pessoa branca?”.2. É necessário superar o mito da democracia racial. Acontece com frequênciaque eu vá ministrar formações sobre temas relacionados à questão da promoçãoda equidade étnico-racial e ainda depare com as seguintes afirmações ouperguntas de professoras e professores: “Por que falar de racismo, somos uma sóraça, a raça humana” ou “Falar de racismo vai nos dividir, nós somos um sópovo”; “Na minha escola não existe racismo”; “Eu não vejo a cor das pessoas,para mim, somos todos filhos de Deus”. Todas estas afirmações relacionam-se aoque alguns pesquisadores chamam de “mito da democracia racial”, ou seja, umacrença que circula no país há séculos, a ideia que prevalece no senso comum deque, aqui no nosso país, somos todos iguais. De fato, todos nós deveríamos sertratados de forma igualitária. Mas, pessoas brancas e pessoas negras nuncaforam tratadas da mesma forma no Brasil, nunca foram tratadas como iguais. Opaís sempre dispensou um tratamento a pessoas negras que as desumanizouretirando-lhes direitos e negando-lhes a dignidade. No pós-abolição, o Brasilcriou leis para impedir pessoas negras de terem acesso à terra para plantar, leispara impedir que elas tivessem acesso à educação, ao trabalho, ao mesmo tempoque criou leis para estimular a migração de pessoas brancas, vindas da Europa.Sempre fomos um país dividido entre aqueles que tinham a sua dignidade17respeitada e aqueles que eram desumanizados. Insistir no mito da democraciaracial cria uma barreira para que o tema seja trabalhado na escola de formaqualificada.3. É imprescindível rever as relações sociais, as práticas pedagógicas e osmateriais didáticos que utilizamos na escola. A aplicação da Lei 10.639 envolvealém do ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira a reflexão sobrecomo o racismo espraia-se na escola, configurando as relações entreprofessoras, professores e estudantes, entre as(os) diferentes profissionais daeducação, entre a escola e a comunidade e no material didático utilizado.Tão importante quanto apresentar conhecimentos e teorias que auxiliem napromoção de uma cultura diversa é promover vivências que proporcionemàs(aos) estudantes e à escola como um todo a experiência de estar em umambiente seguro, no qual todas(os) sintam-se pertencentes e protegidas(os) emseus direitos e em sua dignidade. É inaceitável que a escola promova atividadesvoltadas à educação para as relações étnico-raciais, mas ignore as queixas deestudantes negras(os), indígenas e quilombolas que se sentem violadas(os) emseus direitos, ou não pare para observar os desdobramentos do racismo nopercurso pedagógico de estudantes.4. A comunidade precisa fazer parte para que a escola se torne um terreno fértilem que a aplicação da Lei 10.639 possa se realizar com qualidadepedagógica. É fundamental que a comunidade seja sensibilizada quanto à18importância do tema, e é indispensável que o projeto político-pedagógico daescola seja ancorado na realidade do território. Não raro, as escolas enfrentamresistência quando decidem trabalhar com a cultura africana, afro-brasileira eindígena. O melhor caminho para vencer as resistências é o investimento naconstrução de vínculos e no diálogo. As famílias precisam ser informadas emrelação à legislação que determina que todas(os) as(os) estudantes têm direitode ter acesso a uma educação que lhes garanta o contato com a diversidade ecom a pluralidade de pensamento. Este diálogo deve incluir a escuta das(os)estudantes. Construir um projeto político-pedagógico que traga efetividade naaplicação da lei requer, também, que crianças e adolescentes, em especial,negras(os), indígenas e quilombolas sejam ouvidos quanto à percepção que temda maneira como a escola aborda estes temas.5. É preciso ir além da Pedagogia de Eventos. Ao longo dos 20 anos da aplicaçãoda Lei 10.639 na escola, em função das várias lacunas e falta de um investimentoqualificado nas políticas de formação docente e na produção de materiaispertinentes ao tema, muitas vezes a cultura africana, afro-brasileira e indígenafoi representada de forma reduzida, a partir de cinco ou seis manifestaçõesculturais mais populares (capoeira, feijoada, samba, oficina de turbante,carnaval, etc).Muitas vezes, estas manifestações culturais são abordadas de forma aligeirada,superficial, a partir de eventos que não dialogam com o que está sendo propostoem sala de aula, sem a proposição de um processo pedagógico em que haja a19interação efetiva das(os) estudantes com a história destas manifestações, osentido que cada uma delas têm para os grupos étnicos a que elas estãovinculadas. O risco que se corre com este tipo de abordagem é se reforçar osestereótipos que fazem crer que a cultura negra e indígena se relacionaexclusivamente com manifestações artísticas, quando o que as Leis 10.639 e11.645 buscam é um sentido, uma compreensão mais ampla desta cultura queenvolva, também, conhecer, pesquisar e aprender sobre a cosmo percepção, osmodos de vida, os valores, a história negra, indígena, quilombola.Não significa que estas manifestações artísticas e culturais que aparecem nomês da Consciência Negra não devam acontecer, mas que elas precisam serabordadas com maior qualidade pedagógica, com maior consistência teórica eque elas não podem ser as únicas a se repetirem ano após ano. Para promover aaplicação das Leis 10.639 e 11.645 com a qualidade pedagógica que se deseja énecessário que a escola se constitua como espaço formativo, coletivo ecolaborativo em que as(os) profissionais envolvidas(os) na elaboração do projetopolítico-pedagógico mantenham-se em constante processo de atualização.Promover a educação para as relações étnico-raciais requer a buscapermanente por uma abordagem que se dê de forma transversal, comqualificação, estudo e pesquisa permanente.6. A solidão pedagógica precisa ser enfrentada. As escolas e as(os) profissionaisda educação precisam sentir-se apoiadas(os) e subsidiadas(os) para fazer umtrabalho pedagógico em ERER que tenha a qualidade necessária. O que eu mais20observei ao longo destes 20 anos de implementação da Lei 10.639 foi a lutaincansável e, na maioria das vezes, solitária, de escolas e profissionais daeducação que sabiam da importância de fazer a lei ser cumprida, mas que nemsempre encontravam o apoio necessário para fazê-lo. Toda escola faz parte deuma rede de ensino e toda rede de ensino deve cumprir o seu papel quanto ainvestir recursos na promoção das políticas voltadas à ERER. Esperar que asescolas deem conta da tarefa sozinhas, apostando que o trabalho200https://ims.com.br/tour-virtual-exposicao-carolina-maria-de-jesus-ims-paulista/https://ims.com.br/tour-virtual-exposicao-carolina-maria-de-jesus-ims-paulista/https://www.youtube.com/watch?v=3TBz8w8OyRI&t=4shttps://www.youtube.com/watch?v=3TBz8w8OyRI&t=4shttps://ims.com.br/tour-virtual-exposicao-carolina-maria-de-jesus-ims-paulista/Mas afinal, quem foi Carolina Maria de Jesus?Em 1914, nasceu Carolina Maria de Jesus na pequena cidade de Sacramento, sulde Minas Gerais. O Brasil, que em maio de 1888 aboliu a escravidão e em novembro de1889 substituiu um regime monárquico pelo republicano, mantinha características deum passado escravista, revelado na desigualdade racial e social. Na sua infância,Carolina Maria de Jesus conviveu com pessoas que foram escravizadas, por exemplo, oseu avô, a quem chamava de Sócrates Africano. A pequena Bitita91, apelido que recebeuquando criança, cresceu rodeada de pobreza, analfabetismo, racismo e violência degênero.Na obra autobiográfica “Diário de Bitita”, a partir da escrita de Carolina Maria deJesus mais velha, temos o privilégio de ler o que ela escreve sobre si e como se vê, oque rememora e como revive a encenação de seu e outros corpos em seus múltiplospapéis, quais são as marcas históricas e sociais de sua temporalidade.A escrita de Carolina retrata as relações vividas em seu cotidiano. Nele podemosobservar uma disputa do espaço de seu corpo negro na sociedade, uma luta entre o“lugar natural” ao qual estava destinada pelas marcas sociais e econômicas dopósabolição e o “lugar não-natural” ao qual desejava e buscava estar. Na sua narrativaé possível notar uma conexão contraditória e dialética entre o Dominante (adultos,homens e brancos) e o Dominado (criança, mulher e negra). Porém, essa contraposiçãonão ocorre somente em termos abstratos, mas também de forma real na luta diária deBitita contra as múltiplas facetas das opressões que a cercam.91 Segundo pesquisa realizada pelo jornalista Tom Farias, a palavra bitita é originária do termo feminino “mbita”, da língua xichangana, falada emMoçambique, ou “bita”, em corruptela, que significa “panela de barro”, induzindo a pensar que, como atesta o Dicionário Infopédia da LínguaPortuguesa, o “diminutivo feminino singular desse termo gera a palavra “bitita”. Portanto, “bitita” (apelido de infância da escritora) édesignativo de algo vindo do barro, cuja cor é ocre ou preta.201Carolina nos apresenta uma Bitita sedenta por conhecimento, sobre si e sobre omundo. Diante da sua realidade ela questiona à mãe se ela é bicho ou gente. Contudo,não fica satisfeita em saber o que é, precisa descobrir também quem ela é dentro domundo: mulher ou homem? Nessa primeira impressão, os homens eram figuras fortes eprovedoras e as mulheres fracas, e ela não queria esse lugar. Com o passar do tempo,Bitita percebe que as mulheres podem ter tanto poder quanto um homem, afinal ouviudurante uma festa junina a história de uma mulher com poder de mandar um rei cortara cabeça de João Batista92, de quem todos falavam.No entanto, Bitita percebe que seu corpo além de ser percebido por ela e poroutros como mulher, também tem outra marca social, a negritude, permeada por umapobreza histórica. Mesmo nesse lugar, a menina não se cala e enfrenta até mesmo umjuiz branco93 para defender aquilo em que acredita, sendo chamada de “negrinhaatrevida” por ter coragem de expor os abusos sexuais que o filho dele cometia contraas meninas do orfanato.Toda essa determinação e curiosidade levaram a menina a ir além de todoimaginário pensado e possível para a sua realidade. Aprendeu a ler e escrever desdepequena, era questionadora e corajosa, características que lhe renderam a fama de“louca” e a levaram para cadeia bem novinha.O jornalista Tom Farias, ao falar de Carolina Maria de Jesus, ressalta que ela tevea sua jornada associada à desordem social, pois não aceitava para si o rumo de vidaorientado pelos outros. Isso fez com que ela se tornasse uma peregrina, com longasandanças a pé de cidade em cidade, em busca de alimento e de dignidade.93 (JESUS, 2014, pg. 33)92 (JESUS, 2014, pg. 27)202Em 1937, Carolina Maria de Jesus94 decide migrar para a cidade de São Paulo,depois de viver por mais de vinte anos em Sacramento. As razões para a migração sãomuitas, mas as dificuldades em conseguir trabalho, uma saúde instável e suainsatisfação com a própria vida fizeram com que decidisse tomar o rumo de uma cidadeque era desejada e temida, mas que para Carolina poderia significar um recomeço.Na cidade de São Paulo, além das marcas sociais de "mulher" e "negra" queCarolina representava, foi acrescentada a de “favelada”. Foi na favela do Canindé que oseu livro mais famoso foi escrito. Quarto de despejo: diário de uma favelada95 , lançadopela primeira vez em 1960, tornou Carolina uma das escritoras com maior número devendas, no ano, no Brasil e com grande repercussão internacional.O livro se tornou um best-seller traduzido para 16 línguas e vendido em mais de40 países, entre eles a França. A revista francesa Paris Match publicou uma matériasobre a escritora brasileira e seu livro, revista que tinha como leitora fiel a antilhanaFrançoise Ega, mulher negra e trabalhadora doméstica que, como Carolina, escrevia esonhava em ter seus textos publicados. Françoise Ega sentiu-se profundamente tocadapor Carolina Maria de Jesus, ao ponto de criar um diálogo com ela em sua obra Cartas auma negra96, na qual ela escreve cartas para a brasileira, cartas que nunca foramentregues. Em maio de 1962, em seu primeiro texto para Carolina, Françoise diz:96 A obra de François Ega, publicada pela Editora Todavia, foi selecionada para o PNLD 2021 e poderá ser escolhida pelas escolas de todo o Brasilpara compor o acervo das Bibliotecas e Salas de Leitura. No site da editora Todavia há excelentes materiais de apoio para desenvolver o trabalhocom a obra em turmas de Ensino Médio. Confira! https://todavialivros.com.br/pnld2021/cartasaumanegra.95 Quarto de despejo é o livro mais famoso da Carolina Maria de Jesus, mas não é o único. Leia também: Diário de Bitita, Casa de Alvenaria, Meuestranho diário, Antologia pessoal e Meu sonho é escrever.94 (CASTRO e MACHADO, 2007)203https://todavialivros.com.br/pnld2021/cartasaumanegraPois é, Carolina, as misérias dos pobres do mundo inteiro se parecem comoirmãs. Todos leem você por curiosidade, já eu jamais lerei; tudo o que vocêescreveu, eu conheço, [...]Apesar de chamar os seus textos para Carolina de cartas, Françoise cria umaespécie de diário no qual narra o seu dia a dia como trabalhadora doméstica. Atravésdos seus textos é possível ter uma ideia de como era ser uma mulher negra e pobrevivendo na França.12 de abril de 1963No primeiro dia de trabalho na casa da patroa, trouxe comigo uma marmita. Eladisse: “Não precisa de uma marmita, aqui não é uma cantina! Sempre haveráalgo para comer!”. Assim, no dia seguinte, não levei nada de casa para o almoço.A patroa disse aquilo, mas seu marido olhou para mim de pé, com meus setentaquilos bem distribuídos, e disse: “Essa mulher deve comer feito um animal!”. Aoouvir a frase, perdi o apetite e, de noite, voltando para casa, senti meuestômago roncar, pois tinha hesitado em comer direito.25 de novembro de 63Rapidamente terminei de limpar a casa e fui visitar a velhinha querida. Ao notarminha presença, ela exclamou:“Chegou a minha martinicana!”Enfim, houve progresso, ela não disse a “negra”. Tirei o pó de todas as peçasenquanto ela me falava o que tinha feito em La Roque-d’Antherón durante suaestada, também me contou sobre Beaucaire, Sisteron e Miramas, onde os netosdela moram. E pela centésima vez lhe descrevi a casa da minha mãe e asárvores que a rodeavam. O que ela não entende de jeito nenhum é que os204invernos nunca chegam lá; por ela, tento esquecer que outras mulheres de olhosazuis têm o coração sombrio.Ao desafiara realidade a sua volta e escrever com os poucos recursos queestavam à sua disposição, ou seja, em cadernos velhos encontrados no lixo, Carolinainstaura uma nova tradição na literatura. Não eram só homens e mulheres brancas quepodiam escrever, uma mulher negra e favelada também poderia.Nascida há 108 anos, Carolina segue emocionando e influenciando a escrita demulheres negras. Mesmo sendo uma escrita única, as palavras de Carolinarepresentaram e seguem representando inúmeras mulheres, como é o caso dasescritoras do livro Carolinas, lançado em 2021. Em comemoração aos 60 anos depublicação de Quarto de Despejo, a Festa Literária das Periferias- FLUP criou umprocesso de formação de escrita, para o qual se inscreveram mais de 500 mulheres.Esta edição do projeto FLUP – “Pensa, uma revolução chamada Carolina” foi destinadaexclusivamente a mulheres autodeclaradas negras. O evento contou com mulheres denorte a sul do país, algumas ainda alunas do Ensino Médio, outras já aposentadas, enão só do Brasil, mas também da Europa e África. Todas essas mulheres, além da cor,têm em comum Carolina Maria de Jesus como precursora e inspiração. Como resultadodesse processo, foi lançado em 2021 o livro Carolinas: a nova geração de escritorasbrasileiras97, escrito pelas mãos de 180 mulheres.97 O livro Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileiras foi escrito a partir de formações que tiveram início no dia 12 de maio de2020 e foram até o dia 19 de agosto do mesmo ano (aniversário de 60 anos da publicação de Quarto de Despejo). As mulheres negras queescreveram o livro são de diversos lugares do Brasil e foram selecionadas a partir de cartas enviadas à Carolina. As mais de duzentas escritorasforam divididas em oito grupos por ordem alfabética. Os grupos foram orientados por escritora(e)s que tiveram liberdade para proporabordagens diferentes para a criação de textos para o livro. Ana Paula Lisboa e Fred Coelho escolheram o gênero diário, sendo que ele sugeriu aescrita de um diário coletivo feito através de encontros semanais e ela um diário em que as mulheres narrassem suas próprias experiências, oumesmo que ficcionalizassem, mas sempre na primeira pessoa.205Ver vídeo: Flup Digital 2020 | Cartas para Carolina - Alana Francisca98Carolina Maria de Jesus, em suas obras, mostra que não existe ninguém maispreparado para escrever sobre nossas vivências do que nós mesmos. É hora detrabalhar com o gênero diário em sala de aula, apresentar as obras citadas no texto epropor a turmas de estudantes que escrevam sobre o seu dia a dia.Objetivos geraisO trabalho com a escrita de diários nas escolas pode ser extremamente potente.Por seu caráter íntimo, sem grande rigidez de linguagem e formato, o gênero possibilitaque os(as) estudantes explorem sua própria subjetividade e registrem seu cotidianocom autonomia.Para inspirar o grupo, sugerimos que sejam trabalhados trechos de Quarto deDespejo (diário de Carolina Maria de Jesus). De maneira conjunta, propõe-se aabordagem de duas outras obras: Cartas a uma negra (de Françoise Ega) e Carolinas: anova geração de escritoras negras brasileiras (de autoria coletiva). Ao mesmo tempo emque registram a experiência singular de suas autoras, os textos estabelecem vínculostemáticos e estilísticos com Carolina, incluindo-a, muitas vezes, como interlocutora -explícita ou implícita.98 Disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=B7Htsh0VNHo&t=1s.206https://www.youtube.com/watch?v=B7Htsh0VNHo&t=1shttps://www.youtube.com/watch?v=B7Htsh0VNHo&t=1sO trabalho em sala de aula com a produção dessas três autoras permite nãosomente aproximar os estudantes/a turma do gênero diário pessoal, como tambémrefletir sobre a experiência de mulheres negras pelo negro.BNCCCompetências Específicas de Língua Portuguesa:Competência específica nº 1:Compreender as linguagens como construção humana, histórica, social e cultural, denatureza dinâmica, reconhecendo-as e valorizando-as como formas de significação darealidade e expressão de subjetividades e identidades sociais e culturais.Competência específica nº 5:Desenvolver o senso estético para reconhecer, fruir e respeitar as diversasmanifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, inclusive aquelaspertencentes ao patrimônio cultural da humanidade, bem como participar de práticasdiversificadas, individuais e coletivas, da produção artístico-cultural, com respeito àdiversidade de saberes, identidades e culturas.Práticas de linguagem / Objetos do conhecimento:207● LeituraObjetos de conhecimento:1. Reconstrução das condições de produção, circulação e recepção;2. Apreciação e réplica;3. Adesão às práticas de leitura.Habilidades:(EF69LP44) Inferir a presença de valores sociais, culturais e humanos e de diferentesvisões de mundo, em textos literários, reconhecendo nesses textos formas deestabelecer múltiplos olhares sobre as identidades, sociedades e culturas econsiderando a autoria e o contexto social e histórico de sua produção.(EF69LP46) Participar de práticas de compartilhamento de leitura/recepção de obrasliterárias/manifestações artísticas, como rodas de leitura, clubes de leitura, eventosde contação de histórias, de leituras dramáticas, de apresentações teatrais, musicaise de filmes, cineclubes, festivais de vídeo, saraus, slams, canais de booktubers, redessociais temáticas (de leitores, de cinéfilos, de música etc.), dentre outros, tecendo,quando possível, comentários de ordem estética e afetiva e justificando suasapreciações, escrevendo comentários e resenhas para jornais, blogs e redes sociais eutilizando formas de expressão das culturas juvenis, tais como, vlogs e podcastsculturais (literatura, cinema, teatro, música), playlists comentadas, fanfics, fanzines,ezines, fanvídeos, fanclipes, posts em fanpages, trailer honesto, vídeo-minuto, dentreoutras possibilidades de práticas de apreciação e de manifestação da cultura de fãs.(EF69LP49) Mostrar-se interessado e envolvido pela leitura de livros de literatura epor outras produções culturais do campo e receptivo a textos que rompam com seu208universo de expectativas, que representem um desafio em relação às suaspossibilidades atuais e suas experiências anteriores de leitura, apoiando-se nasmarcas linguísticas, em seu conhecimento sobre os gêneros e a temática e nasorientações dadas pelo professor.● Produção de textosObjetos de conhecimento:1. Consideração das condições de produção;2. Estratégias de produção: planejamento, textualização e revisão/edição.Habilidades:(EF69LP51) Engajar-se ativamente nos processos de planejamento, textualização,revisão/edição e reescrita, tendo em vista as restrições temáticas, composicionais eestilísticas dos textos pretendidos e as configurações da situação de produção – oleitor pretendido, o suporte, o contexto de circulação do texto, as finalidades etc. – econsiderando a imaginação, a estesia e a verossimilhança próprias ao texto literário.Recursos materiais necessáriosTrechos dos textos selecionados, impressos ou digitais; caderno individual para oregistro do diário; materiais para escrita, como canetas, lápis, giz de cera, etc.209Veja abaixo os trechos selecionados:São Paulo, 13 de maio de 1958Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Abolição. Dia quecomemoramos a libertação dos escravos. [...]Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal. A chuva está forte. Mesmo assim, mandeios meninos para a escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu ir lá no senhorManuel vender os ferros. Com o dinheiro dos ferros vou comprar arroz e linguiça. Achuva passou um pouco. Vou sair. ...Eu tenho tanto dó dos meus filhos. Quando eles vê ascoisas de comer, eles brada: —Viva a mamãe!A manifestação agrada-me. Mas eu já perdi o hábito de sorrir.[...]Choveu, esfriou. E o inverno que chega. E no inverno a gente come mais. A Veracomeçou pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espetáculo. Eu estava com doiscruzeiros. Pretendia comprar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui pedir umpouco de banha a Dona Alice. Ela deu-me a banha e arroz. Era 9 horas da noite quandocomemos. E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual — afome!(Quarto de Despejo, p. 27)210São Paulo, 5 de janeiro de 1959… Está chovendo. Fiquei quase louca com as goteiras nas camas, porque o telhado écoberto com papelões e os papelões já apodreceram. As aguas estão aumentando einvadindo os quintais dos favelados.(Quarto de Despejo, p. 150)Paris, 8 de novembro de 1962Estou com uma dor de garganta das brabas, que me obriga a ficar em casa. Repouso nacama. Mas não conheço muitas donas de casa que ficam na cama. Pessoalmente, meconcedo o direito de ficar em casa com essa chuva que não para de cair. Mas há muito oque fazer aqui! Meus filhos estão crescendo, eles têm um jeito todo deles de abrir osbraços para me mostrar que suas roupas estão curtas demais! Preciso aproveitar adoença para aumentar em alguns centímetros o comprimento das camisas.(Cartas a uma negra, p. 53)Paris, 31 de março de 1963Carolina, posso realmente dizer que perdi tempo só porque não deixei o melhor que eutinha na casa de “uma senhora”? Não! Terminei meu primeiro livro, só me resta colocar apalavra “fim”, não me convenci a fazer isso, uma imensa apreensão me invade.Enquanto ainda não era um livro, todas as hipóteses me eram permitidas; às vezes,podia imaginar pessoas o rejeitando: “Que fiasco!”211Em outros momentos, podia vê-lo nas mãos de “uma senhora”, repetindo à suaprincesinha: “Oh! Você pode ler! Eu adorei.”Agora que terminei o livro, que não faço mais suposições e que escrevi pedindoconselhos a quem me permitiu conhecer você, sinto vergonha. É inexplicável, mas eutinha mesmo o direito de maltratar a língua de Molière? Eu, uma pobre negra? Tinha euo direito de dizer coisas bonitas em um francês meia-boca? É isso o que me preocupa!(Cartas a uma negra, p. 87)São Paulo, 15 de setembro de 2020Ontem não escrevi, e hoje preciso fazer um grande esforço para escrever. A chuva devento levou quase metade das teias, no desespero subi na cama e tentei seguraralgumas. As meninas se esconderam embaixo da mesa grande, fiquei sem teias e com amão machucada. Mais tarde irei falar com o padre, talvez a comunidade possa ajudar.(Eduarda Ribeiro em Carolinas, p. 177)Roteiro de atividades1ª Etapa: Apresentação do gênero diário (1 aula)Objetivo:● Aproximar a turma do gênero diário.212Atividades:1. Resgate os conhecimentos prévios e retome as características do gênero diário.Busque levantar conhecimentos prévios sobre o gênero, destacando suascaracterísticas, a exemplo da narrativa em primeira pessoa e a possibilidade de criarliteratura a partir de seu cotidiano. Instigue-os a partir de questões como: “Para queserve um diário?”, “Você já escreveu um diário?”, “Que tipo de informação consta nosregistros?”, “Quem costuma protagonizar os relatos num diário?”, “De que tipos dediário vocês já ouviram falar?”.Importante dizer que, dentre as modalidades de diários, existem os utilizados pararegistros públicos ou que poderão ser amplamente divulgados, como os diários debordo, diários de classe, diários de viagem, diários de guerra. Aqui, o nosso foco serãoos diários pessoais, que, ainda que sejam publicados, como os das referências literáriasque leremos, seguem um tom íntimo.Apesar dos elementos que constituem o diário pessoal serem bastante flexíveis, épossível identificar uma estrutura em comum, como data e local identificando o contextode enunciação; vocativo (em alguns casos o próprio diário, mas também pode haver uminterlocutor externo, como é o caso da Françoise Ega), linguagem simples, muitas vezesinformal, e em primeira pessoa; tema cotidiano, envolvendo impressões e sensaçõessobre a vida de quem escreve.Pergunte à turma se conhece produções artísticas envolvendo diários e o que elas têmem comum. Utilize como exemplo o Diário de Anne Frank (1947), Diário de um banana(2007), Diário da princesa (2001), Todo mundo odeia o Chris (2005) ou outros exemplos213de filmes, livros e séries que possam gerar interesse entre eles(as). Aponte os aspectossemelhantes entre as obras: registros em primeira pessoa relatando o cotidiano. Emboratenham se tornado obras públicas, existe um tom íntimo na narrativa, característico dogênero.Vale, ao longo desse momento de conversa, sistematizar as ideias que foram levantadasna lousa.2ª Etapa: Leitura de trecho da obra de Carolina Maria de Jesus (1 aula)Objetivo:● Aproximar estudantes da biografia e obra de Carolina Maria de Jesus.Atividades:1. Apresente Carolina Maria de Jesus.Exiba imagens de Carolina Maria de Jesus e conte um pouco de sua história, tomandocomo base o artigo Carolina: uma história a ser contada, de Eduarda Ribeiro Rodrigues,e o material disponibilizado no site99 do Instituto Moreira Salles. É interessante ressaltarque embora o diário seja um gênero íntimo, Carolina afirmava que desde o inícioescrevia para ser lida, ou seja, havia uma intencionalidade de ter seu diário publicado. Émuito importante evitar as visões estigmatizadas acerca da autora, que a enxergam99 Disponível no link https://ims.com.br/tour-virtual-exposicao-carolina-maria-de-jesus-ims-paulista/.214https://ims.com.br/tour-virtual-exposicao-carolina-maria-de-jesus-ims-paulista/https://ims.com.br/tour-virtual-exposicao-carolina-maria-de-jesus-ims-paulista/exclusivamente como uma escritora favelada e acabam por ignorar todo o potencialliterário de sua obra.Em seguida, proponha reflexões sobre os possíveis motivos que a levaram a escreverdiários. Vale destacar a experiência artística multifacetada da autora e introduzi-los àssuas produções musicais e à vasta produção literária. Para instigá-los sobre o tema,busque levantar entre a turma algumas hipóteses que amarrem características dogênero textual, da vida e da obra de Carolina, como “Por que será que, dentre os muitosgêneros literários, Carolina optou escrever um diário?”, “Que aspectos da vida deCarolina devem ser interessantes para compor um diário?”, “Será que Carolina incluíaem seus escritos todos os fatos do seu cotidiano? Se não, como ela escolhia o quedeveria aparecer no livro ou não?”.Leia, então, para a turma o trecho do dia 20 de julho de 1955, disponível abaixo.20 de julho de 1955Deixei o leito as 4 horas para escrever. Abri a porta e contemplei o céu estrelado.Quando o astro-rei começou despontar eu fui buscar água. Tive sorte! As mulheresnão estavam na torneira. Enchi minha lata e zarpei. (...) Fui no Arnaldo buscar o leite eo pão. Quando retornava encontrei o senhor Ismael com uma faca de 30 centimetrosmais ou menos. Disse-me que estava a espera do Binidito e do Miguel para matá-los,que êles lhe expancaram quando êle estava embriagado.Lhe aconselhei a não brigar, que o crime não trás vantagens a ninguem, apenasdeturpa a vida. Senti o cheiro do alcool, disisti. Sei que os ébrios não atende. O senhorIsmael quando não está alcoolizado demonstra sua sapiencia. Já foi telegrafista. E do215Circulo Exoterico. Tem conhecimentos bíblicos, gosta de dar conselhos. Mas não temvalor. Deixou o alcool lhe dominar, embora seus conselho seja util para os que gostamde levar vida decente.Preparei a refeição matinal. Cada filho prefere uma coisa. A Vera, mingau de farinhade trigo torrada. O João José, café puro. O José Carlos, leite branco. E eu, mingau deaveia.Já que não posso dar aos meus filhos uma casa decente para residir, procuro lhe daruma refeição condigna.Terminaram a refeição. Lavei os utensílios. Depois fui lavar roupas. Eu não tenhohomem em casa. É só eu e meus filhos. Mas eu não pretendo relaxar. O meu sonho eraandar bem limpinha, usar roupas de alto preço, residirnuma casa confortável, masnão é possivel. Eu não estou descontente com a profissão que exerço. Já habituei-meandar suja. Já faz oito anos que cato papel. O desgosto que tenho é residir em favela.... Durante o dia, os jovens de 15 e 18 anos sentam na grama e falam de roubo. E játentaram assaltar o empório do senhor Raymundo Guello. E um ficou carimbado comuma bala. O assalto teve inicio as 4 horas. Quando o dia clareou as crianças catavadinheiro na rua e no capinzal. Teve criança que catou vinte cruzeiros em moeda. Esorria exibindo o dinheiro. Mas o juiz foi severo. Castigou impiedosamente.Fui no rio lavar as roupas e encontrei D. Mariana. Uma mulher agradavel e decente.Tem 9 filhos e um lar modelo. Ela e o espôso tratam-se com iducação. Visam apenasviver em paz. E criar filhos. Ela tambem ia lavar roupas. Ela disse-me que o Binidito daD. Geralda todos os dias ia prêso. Que a Radio Patrulha cançou de vir buscá-lo.Arranjou serviço para êle na cadêia. Achei graça. Dei risada!... Estendi as roupasrapidamente e fui catar papel. Que suplicio catar papel atualmente! Tenho que levar aminha filha Vera Eunice. Ela está com dois anos, e não gosta de ficar em casa. Eu216ponho o saco na cabeça e levo-a nos braços. Suporto o pêso do saco na cabeça esuporto o pêso da Vera Eunice nos braços. Tem hora que revolto-me. Depoisdomino-me. Ela não tem culpa de estar no mundo.Refleti: preciso ser tolerante com os meus filhos. Êles não tem ninguem no mundo anão ser eu. Como é pungente a condição de mulher sozinha sem um homem no lar.Aqui, todas impricam comigo. Dizem que falo muito bem. Que sei atrair os homens. (...)Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo.Sento no quintal e escrevo.Ao longo da leitura, vale levantar questionamentos como: “Que aspectos do seu relatomais chamam a atenção?”, “Como é a relação de Carolina com seu entorno?”, “Quaiselementos são valorizados por Carolina em seu dia a dia?”, “Que momentos sãoescolhidos para compor o diário?”, “Que função a escrita ocupa no cotidiano deCarolina?”, “De que maneira escrever sobre seu dia a dia no Canindé pôde impactartanta(o)s leitora(e)s?”.3ª Etapa: Leitura de trechos de obras inspiradas por Carolina Maria de Jesus (1 aula)Objetivo:● Apresentar as produções que dialogam com a obra de Carolina, valorizandosua enorme influência sobre outras escritoras de diferentes épocas.217Atividades:1. Distribua os trechos dos diários de Carolina, Françoise Ega e Eduarda Rodrigues(Carolinas):Entregue para a turma cópias impressas dos trechos de todas as obras ou projete-asna sala. Peça que leiam silenciosamente e busquem compreender do que se tratam ostextos. A essa altura, eles(as) já conhecem Carolina, sabem da existência de Quarto deDespejo e compreenderam um pouco de sua trajetória. Pode ser interessante, nessemomento, que o trabalho seja desenvolvido em duplas. Nesse caso, uma das pessoaspode registrar no caderno as impressões acerca dos relatos, levantando hipótesessobre o que há de comum e de diferente em cada texto. Provoque-os(as) a observartanto os temas, quanto a linguagem e a estrutura textual. Espera-se que identifiquem oformato em comum, além dos relatos acerca da chuva e sobre os processos de escrita.Por outro lado, os registros estão temporalmente e espacialmente bastante distantes.Você pode optar por, posteriormente, realizar uma leitura em voz alta dos trechos lidospelas duplas, com o intuito de aprofundar a interpretação de cada um. A reflexão sobreos registros pode ser guiada por questões como:● "Carolina escreve em um só momento do dia ou em vários? Que indícios o textonos dá sobre isso?”;● “A linguagem utilizada por Carolina é formal ou informal?”;● “Será que há intencionalidade no uso de construções mais rebuscadas como‘bradar’ ou ‘agrada-me’?”;● “No último trecho do dia, Carolina afirma acontecer uma "reprise do espetáculo".O que ela quer dizer com isso?”;218● “Que marcas textuais mostram o lugar que Françoise ocupa na sociedadefrancesa? Como isso impacta seu cotidiano?”;● “Qual é o papel de Carolina na obra de Françoise?”;● “A partir do diário de Eduarda, como podemos imaginar o espaço que elahabita?”;● “O que há em comum com relação à forma dos trechos?”;● “O que há em comum no que diz respeito ao tema dos trechos?”;● “Vocês conseguem imaginar porque a chuva foi um aspecto do dia selecionadopara compor o diário das autoras?”;● “De que maneira o ato de escrever atravessa os relatos?”.2. Apresente as obras e autoras de cada trechoExplique as propostas que envolvem cada produção e como Carolina é o eixo delas.Para embasar a conversa sobre Cartas a uma negra, consulte o material preparado pelaeditora Todavia100. Ele contém materiais específicos para professores(as) e estudantesacerca da obra e da autora.No site da editora Bazar do Tempo, responsável pela publicação de Carolinas, há uminteressante trecho da escritora Conceição Evaristo sobre o projeto101. Pode ser um bomponto de partida para inspirar a apresentação da obra para a turma.Comente sobre o contexto de produção dos textos e sobre a escolha do gênero textualpara estabelecer o diálogo com a autora. Fale também sobre a importância de mulheres101 Disponível no link https://bazardotempo.com.br/loja/carolinas-a-nova-geracao-de-escritoras-negras-brasileiras/.100 Disponível no link https://todavialivros.com.br/pnld2021/cartasaumanegra.219https://todavialivros.com.br/pnld2021/cartasaumanegrahttps://todavialivros.com.br/pnld2021/cartasaumanegrahttps://bazardotempo.com.br/loja/carolinas-a-nova-geracao-de-escritoras-negras-brasileiras/https://bazardotempo.com.br/loja/carolinas-a-nova-geracao-de-escritoras-negras-brasileiras/https://bazardotempo.com.br/loja/carolinas-a-nova-geracao-de-escritoras-negras-brasileiras/https://todavialivros.com.br/pnld2021/cartasaumanegracomo Françoise e todas as envolvidas no projeto Carolinas terem referências literáriascomo Carolina Maria de Jesus, pontuando aspectos como identificação e alteridadeenquanto fundamentais para a representatividade.Nesse sentido, é fundamental estabelecer um debate sobre a presença de mulheres,sobretudo negras e indígenas, na literatura, abordando tanto a baixa divulgação deproduções ao longo da história – a exemplo do fato de livros como Úrsula, de MariaFirmina, ou mesmo Quarto de Despejo, terem ficado por tanto tempo sem o devidodestaque. É interessante articular o debate com aspectos sociais sobre o lugar damulher na sociedade, instigando-os a refletir sobre suas próprias referênciasfemininas: “Quem são as mulheres que estão presentes em seus cotidianos e quepoderiam ter suas histórias divulgadas a partir da escrita literária de um diário?”.4ª Etapa: Escrita coletiva de um diário da turma (1 aula)Objetivo:● Propor a escrita coletiva de um diário sobre a experiência da turma com a obrade Carolina Maria de Jesus.Atividades:1. Retome as características do diário vistas na primeira aula e proponha a escritacoletiva220Questione o grupo sobre os aspectos estruturais que compõem o gênero e suascaracterísticas trabalhadas na AULA 1: estrutura, vocativo (com possibilidades deinterlocução), linguagem, temática cotidiana.Proponha, então, a escrita coletiva de um dia do diário, utilizando a 1ª pessoa do plural,de forma a refletir um registro da turma.Essa primeira escrita pode ter como eixo a experiência com a obra de Carolina,tomando-a como interlocutora e apresentando, em nome da turma, as impressões quetiveram ao ter contato com sua vida e obra. Instigue também o olhar para os textos deEduarda Rodrigues (Carolinas) e Françoise Éga, relembrando o diálogo traçado pelasautoras com a obra de Carolina Maria de Jesus.A partir desse processo em grupo, será possível ressaltar os aspectos centrais daestrutura do gênero, além de selecionar, em uma negociação coletiva do grupo, osmomentosda aula que devem ser registrados. Aguçar o olhar e a memória e identificaro que deve compor o texto é um momento crucial.Retome aspectos banais da aula como alguém que pediu para ligar o ventilador ou umapessoa que perguntou a data - será que esses momentos devem aparecer nesse diáriocoletivo? Por outro lado, existem também momentos que poderiam ser insignificantesmas que acabam ganhando destaque, por exemplo: a entrada de um funcionário que seinteressou pela leitura do diário de Carolina, um(a) estudante que se prontificou para lerum trecho ou até mesmo as conversas paralelas.Ao longo do processo, estimule o registro das sensações ao longo da leitura:● “O que causou tristeza? Alegria? Angústia?”;221● “O que é importante dizer para Carolina depois de conhecê-la?”;● “Que aspectos da obra geraram identificação? E estranhamento?”.Não se esqueça de ler com a turma o resultado final da escrita coletiva. É legal tambémfotografar o texto, para que possam acessá-lo em momentos futuros.5ª Etapa: Escrita individual de um diário (1 aula)Objetivo:● Propor a escrita individual de um diário ao longo de 7 dias, a fim deaproximálos do processo de registro do cotidiano.Atividades:1. Proponha a escrita individualA escrita do diário é uma estratégia que pode contribuir com a identificação da turmaenquanto autoras e autores. Sabemos que muitas vezes a criação literária parece algodistante e trabalhoso, por isso apresentar Carolina, Françoise e as mulheres do projetoCarolinas é uma maneira de aproximar estudantes da autoria literária a partir doregistro cotidiano.Para Delia Lerner (2002), “A elaboração de um diário pessoal pode configurar umainteressante proposta de produção textual permanente no cotidiano de jovensescritores. É um gênero privilegiado para que o aluno perceba a produção textual como222uma forma interessante de organizar e reconfigurar, por meio da produção escrita oudo registro em áudio/áudio vídeo, suas próprias experiências.”.Informe à turma que, ao longo da próxima semana, eles(as) vão se dedicar à escrita deum diário pessoal. Explique, desde o início, que embora seja um registro muitas vezesíntimo e secreto, essa escrita será compartilhada com você, docente. A ideia do registroao longo de 7 dias é contemplar diferentes momentos da semana, incluindo o final desemana, quando a rotina deles(as) será diferente. Você pode sugerir que escolham, aolongo dos próximos dias, os momentos mais interessantes, resgatando que a ideia nãoé simplesmente registrar os fatos, mas suas impressões e sensações sobre eles.Proponha algumas questões para guiar o processo, como:● “Que momento do dia superou as expectativas?”;● “Que fatos geraram indignação?”;● “Que situações foram inusitadas?”;● “Que sentimento prevaleceu ao longo do dia e por quê?”;● “Que momentos você gostaria de viver outra vez? E quais preferia que nemtivessem acontecido?”;● “Que pessoas marcaram cada momento do dia?”.A depender do perfil da turma, sugira que iniciem a escrita em casa ou oriente sobre aatividade que será desenvolvida na próxima aula, em sala. A produção textual individualdos diários seguirá o modelo do trabalho feito coletivamente: seguindo a estrutura dogênero textual, cada estudante produzirá um diário pessoal, em primeira pessoa,levando em conta o seu cotidiano, podendo dialogar com os textos literáriosapresentados.223A escrita individual é uma oportunidade de desenvolver diferentes habilidades,considerando tanto o olhar subjetivo sobre si mesmo e seu dia a dia, quanto aspectospráticos do letramento.Combine com a turma como será o acompanhamento do processo – você lerádiariamente alguns registros ou apenas ao final da semana? Como será a correção eque aspectos serão avaliados? É importante que, mais do que simplesmente dar umanota para os trabalhos, você comente sobre os pontos que poderiam se aprofundar nosregistros. Para fortalecer esse processo, a prática da reescrita é uma grande aliada.Referências bibliográficas:CASTRO, Eliana de Moura; MACHADO, Marília Novais da Mata. Muito bem, Carolina!Biografia da Carolina Maria de Jesus. Belo Horizonte: C/Arte, 2007. 136 p.Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileiras/ organização Julio Ludemir. 1ªed. Rio de Janeiro: Bazar do tempo: Flup, 2021.CUNHA, Maria Teresa S. Do Baú ao Arquivo: Escritas de si, escritas do outro. Patrimônioe Memória (UNESP. Online), v. 3, p. 1-18, 2007.EGA, Françoise. Cartas a uma negra: narrativa antilhana. Tradução: Vinícius Carneiro eMathilde Moaty. São Paulo: Todavia. 1ª ed., 2021FARIAS, Tom. Carolina Maria de Jesus, uma escritora presente: revisitando vida e obrada escritora.224GOMES, Angela de Castro (Org). Introdução. In: Escrita de si, escrita da História. Rio deJaneiro: Editora FGV, 2004JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 1ª ed. São Paulo:Abril Educação, 2013.______________________ Diário de Bitita. 1ª ed. São Paulo: Editora SESI-SP, 2014.LERNER, Délia. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Editora Penso,2002.PEREIRA, Maria. Helena. M. SILVA, Jocelma. B. O gênero diário pessoal: como seconfecciona o íntimo. Revista Línguas & Letras – Unioeste – Vol. 16 – Nº 34 – 2015.Sobre as autorasEduarda Ribeiro Rodrigues é graduada em História pela Universidade Nove de Julho.Atualmente, é graduanda do curso de Letras Português/ Francês pela Universidade deSão Paulo.Lara Rocha é coordenadora da rede municipal de São Paulo e mestranda em Letras doPrograma de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, pelaUniversidade de São Paulo (USP).2253.3Nossas vivências e as escrevivências de ConceiçãoEvaristoElaine de Azevedo, Marilane Leite e Karla de Souza[Público-alvo] Estudantes do Ensino Fundamental – Anos Finais.[Duração] 2 a 4 semanas para cada obra[Alinhamento à BNCC] 4 Competências | 6 HabilidadesObjetivos gerais1. Conhecer a autora mineira e a temática de sua obra.2. Refletir sobre as questões abordadas nos textos da autora e compará-las àsrealidades da comunidade de estudantes.3. Relacionar as obras lidas às experiências de leitura dos/as estudantes e a outrostextos, em diferentes gêneros, em linguagens diversas e que circulam emdiferentes mídias.4. Compartilhar as leituras subjetivas de cada obra em situações de interação oral.5. Planejar e elaborar produto multissemiótico que retrate a percepção de cadaobra pelos(as) estudantes.226BNCCCompetências Específicas de Língua Portuguesa:Competência específica n° 3Ler, escutar e produzir textos orais, escritos e multissemióticos que circulam emdiferentes campos de atuação e mídias, com compreensão, autonomia, fluência ecriticidade, de modo a se expressar e partilhar informações, experiências, ideias esentimentos, e continuar aprendendo.Competência específica n° 7Reconhecer o texto como lugar de manifestação e negociação de sentidos, valores eideologias.Competência específica n° 9Envolver-se em práticas de leitura literária que possibilitem o desenvolvimento do sensoestético para fruição, valorizando a literatura e outras manifestações artístico-culturaiscomo formas de acesso às dimensões lúdicas, de imaginário e encantamento,reconhecendo o potencial transformador e humanizador da experiência com aliteratura.Competência específica n° 10Mobilizar práticas da cultura digital, diferentes linguagens, mídias e ferramentas digitaispara expandir as formas de produzir sentidos (nos processos de compreensão eprodução), aprender e refletir sobre o mundo e realizar diferentes projetos autorais.227Práticas de linguagem / Objetos do conhecimento:● LeituraObjetos de conhecimento:1. Reconstrução das condições de produção, circulação e recepção;2. Apreciação e réplica;3. Adesão às práticas de leitura;4. Relação entre textos;5. Estratégias de leitura.Habilidades:(EF69LP44) Inferira presença de valores sociais, culturais e humanos e de diferentesvisões de mundo, em textos literários, reconhecendo nesses textos formas deestabelecer múltiplos olhares sobre as identidades, sociedades e culturas econsiderando a autoria e o contexto social e histórico de sua produção.(EF69LP46) Participar de práticas de compartilhamento de leitura/recepção de obrasliterárias/manifestações artísticas, como rodas de leitura, clubes de leitura, eventosde contação de histórias, de leituras dramáticas, de apresentações teatrais, musicaise de filmes, cineclubes, festivais de vídeo, saraus, slams, canais de booktubers, redessociais temáticas (de leitores, de cinéfilos, de música etc.), dentre outros, tecendo,quando possível, comentários de ordem estética e afetiva e justificando suasapreciações, escrevendo comentários e resenhas para jornais, blogs e redes sociais eutilizando formas de expressão das culturas juvenis, tais como, vlogs e podcastsculturais (literatura, cinema, teatro, música), playlists comentadas, fanfics, fanzines,228e-zines, fanvídeos, fanclipes, posts em fanpages, trailer honesto, vídeo-minuto,dentre outras possibilidades de práticas de apreciação e de manifestação da culturade fãs.(EF69LP49) Mostrar-se interessado e envolvido pela leitura de livros de literatura epor outras produções culturais do campo e receptivo a textos que rompam com seuuniverso de expectativas, que representem um desafio em relação às suaspossibilidades atuais e suas experiências anteriores de leitura, apoiando-se nasmarcas linguísticas, em seu conhecimento sobre os gêneros e a temática e nasorientações dadas pelo professor.(EF89LP32) Analisar os efeitos de sentido decorrentes do uso de mecanismos deintertextualidade (referências, alusões, retomadas) entre os textos literários, entreesses textos literários e outras manifestações artísticas (cinema, teatro, artes visuaise midiáticas, música), quanto aos temas, personagens, estilos, autores etc, e entre otexto original e paródias, paráfrases, pastiches, trailer honesto, vídeos-minuto,vidding, dentre outros.(EF89LP33) Ler, de forma autônoma, e compreender – selecionando procedimentos eestratégias de leitura adequados a diferentes objetivos e levando em contacaracterísticas dos gêneros e suportes – romances, contos contemporâneos,minicontos, fábulas contemporâneas, romances juvenis, biografias romanceadas,novelas, crônicas visuais, narrativas de ficção científica, narrativas de suspense,poemas de forma livre e fixa (como haicai), poema concreto, ciberpoema, dentreoutros, expressando avaliação sobre o texto lido e estabelecendo preferências porgêneros, temas, autores.229● OralidadeObjetos de conhecimento:1. Estratégias de produção: planejamento e produção de apresentações orais.Habilidades:(EF69LP38)Organizar os dados e informações pesquisados em painéis ou slides deapresentação, levando em conta o contexto de produção, o tempo disponível, ascaracterísticas do gênero apresentação oral, a multissemiose, as mídias e tecnologiasque serão utilizadas, ensaiar a apresentação, considerando também elementosparalinguísticos e cinésicos e proceder à exposição oral de resultados de estudos epesquisas, no tempo determinado, a partir do planejamento e da definição dediferentes formas de uso da fala – memorizada, com apoio da leitura ou falaespontânea.“Ensino” de literatura ou formação da(o) leitora(or) literária(o)?A leitura literária realizada na escola tem várias faces. Algumas reproduzidas háanos e mais focadas no “ensino” de literatura são questionáveis quanto à formaçãoda(o) leitora(or) literária(o). Outras promovem novos olhares sobre o texto literário,possibilitando leituras muito particulares com as quais as(os) estudantes se envolvem ecom as quais relacionam vivências pessoais e gêneros textuais outros, que não apenasos literários.Antes de tudo, é importante identificarmos as especificidades de “ensinar”literatura, que envolve uma(um) professora(or) conhecedora(or) do certo e do errado230sobre literatura, e de formar leitora(or) literária(o), que envolve uma(um) mediadora(or)de leitura, que pode ser a(o) professora(or), mas também as(os) próprias(os)estudantes. Construir sentidos para as leituras literárias em colaboração com o coletivode estudantes é um desafio à abordagem da literatura na sala de aula, mas pode ser umelo entre as leituras que as(os) estudantes já realizam, os suportes destas leituras(inclusive digitais) e a literatura proposta pela escola.Foi apostando na ideia de formar leitoras(es) literárias(os) que o projeto coletivofoi elaborado. Para isso, ele procurou relacionar a literatura a outros textos e linguagenspróximas ao universo das(os) estudantes do 9º ano, visando a enriquecer acompreensão das obras com vivências subjetivas e contemporâneas. As autorasidentificaram pontos comuns entre as temáticas das obras selecionadas e o perfil dacomunidade escolar, composta majoritariamente por trabalhadoras(es) e filhas(os) detrabalhadoras(es) pretas(os) e pardas(os), que vivem em condições de vulnerabilidadesocial. Isso foi determinante para a escolha da autora estudada e das obrasselecionadas, que permeiam o universo feminino, a discriminação racial, de gênero e declasse.Assim, trazendo uma temática próxima da realidade local, o projeto buscoudespertar a atenção das(os) estudantes para as obras da autora mineira ConceiçãoEvaristo, envolvendo-as(os) em práticas letradas que incluem as Tecnologias Digitais daInformação e da Comunicação (TDIC), cada vez mais presentes no universo de jovens eadolescentes. As obras escolhidas para o projeto foram Olhos D’Água (2014), Becos daMemória (2006) e Ponciá Vicêncio (2003).231Introdução“Vi só lágrimas e lágrimas.Entretanto, ela sorria feliz.Mas eram tantas lágrimas, que eu me perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosossobre a face.E só então compreendi.Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas.Por isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto.A cor dos olhos de minha mãe era cor de OLHOS D’ÁGUA.Águas de Mamãe Oxum!Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pelasuperfície.Sim, águas de Mamãe Oxum.”(Trecho do conto “Olhos d'água”, 2014)O projeto foi elaborado para o curso “Caminhos da Escrita”, primeiro semestre de2021. As professoras Elaine, Karla e Marilane realizaram um passeio pela teoria acercadas práticas de letramento e de multiletramentos, de gêneros do discurso e demultimodalidade, que constituiu a base para análise de algumas práticas docentes.Após analisarem relatos de práticas de outras professoras e discutirem em fórum,apresentaram suas ideias para um projeto individual, que foi construídogradativamente, enquanto recebiam a colaboração de colegas. Os projetos foramcomentados pela mediadora, que valorizou as potencialidades evidentes e recomendouque incorporassem práticas multiletradas à proposta, indo além do letramento daletra102, conforme discutido no curso.102 Letramentos que privilegiam os textos verbais e, geralmente, impressos.232Em etapa seguinte, as professoras Elaine e Marilane, que já apresentavamprojetos que se alinhavam ao de Karla, ora pela temática, ora pela prática letradaenvolvida, se encantaram pela ideia de introduzir Conceição Evaristo e de dar voz àsvivências literárias de suas(seus) alunas(os). Assim, Elaine e Marilane juntaram-se aela, trazendo, cada uma as potencialidades de seus projetos, para uma proposta, agora,do trio e com o desafio de ir além do que já faziam em sala de aula com o texto literário.Na colaboração entre elas, outras práticas e linguagens do universo digital foramincorporadas ao projeto.As etapas do projeto e as práticas letradas envolvidasO projeto teve como ponto de partida sua apresentação às(aos) estudantes eexplicitação do percurso, desde as leituras até o semináriosobre as obras lidas e aprodução de um book trailer.Book trailers, como o nome indica, são inspirados nos trailers de cinema, quemostram algumas cenas de um filme, visando atrair a(o) espectadora(or).Incorporadospela literatura, são vídeos curtos que contam um pouco da história de um livro, ativandoo interesse da(o) leitora(or), sem, contudo, revelar a narrativa ou as característicasdas(os) personagens. Afinal, nos livros, a ideia é que a(o) leitora(or) imagine as(os)personagens.Desse modo, um book trailer apresenta pontas soltas de uma narrativa, para quea(o) leitora(or) as amarre com a leitura da obra. A linguagem é mais visual e animada eas(os) produtoras(es) podem inserir uma trilha sonora de fundo que se relacione com atrama.233A etapa seguinte constituiu-se de apresentação da autora e do início da leiturade uma das obras e análise do seu contexto de produção. A leitura de cada livro nãoseguiu uma regra. Nos três livros103, partiu-se da leitura da professora, acompanhadapelas(os) estudantes, alternada com momentos de leitura autônoma da turma atédeterminada parte do livro, para discussão ou realização de atividade relacionada.Os momentos de leitura foram planejados previamente. Assim, os contospuderam ser lidos um a cada dia determinado para leitura, seguidos de discussão,enquanto o romance foi lido em etapas previamente planejadas, com o cuidado de seinterromper a leitura da professora ou de agendar a leitura autônoma de cadaestudante até um ponto que suscitasse a relação com aspectos locais ou aintertextualidade com filme, música, poema, série televisiva, obra plástica, entrevistasetc. A partir daí, foram realizadas tertúlias literárias104, discutindo o que o texto sugere,e socializando diferentes leituras das obras selecionadas.Para conhecer o conceito de tertúlia literária:https://www.comunidadedeaprendizagem.com/uploads/materials/6/580d15e17ff1060840d2c6606046dc28.pdf .A prática da tertúlia, neste projeto, faz sentido por propiciar que leitoras(es) comdiferentes vivências pessoais e experiências literárias dialoguem sobre cada obra,construindo coletivamente seus significados e ampliando suas possibilidades104 Na teoria, o termo "tertúlia" está relacionado à leitura de clássicos, mas também tem sido usado paraleituras contemporâneas. O termo pode ser entendido como leitura dialogada.103 Olhos D’Água (2014), Becos da Memória (2006) e Ponciá Vicêncio (2003).234https://www.comunidadedeaprendizagem.com/uploads/materials/6/580d15e17ff1060840d2c6606046dc28.pdfhttps://www.comunidadedeaprendizagem.com/uploads/materials/6/580d15e17ff1060840d2c6606046dc28.pdfinterpretativas. Também propicia o exercício da escuta, da expressão oral e odesenvolvimento do pensamento crítico.Vale ressaltar que essa etapa expande a leitura para além da literatura, aoestabelecer a intertextualidade com outras obras artísticas e gêneros textuais deoutros campos de conhecimento, dialogando com o universo estudantil. A práticavalorizou as vivências de leituras das(os) estudantes para relacioná-las à leituraproposta pela escola. É por meio desse diálogo com vivências contemporâneas queas(os) estudantes podem responder a uma pergunta implícita ao projeto: o que cadaobra lida tem a me dizer? É por esse caminho que o projeto acredita se aproximar daformação da(o) leitora(or) literária(o).Na etapa seguinte às leituras (que também pode ser feita após a leitura de cadaobra específica) as(os) estudantes, juntamente com a professora levantaram temáticaspara análise da verossimilhança presente nos textos literários, o que constituiumaterialidade para as apresentações orais, em um seminário sobre as três obras daautora.Para a realização do seminário, as(os) estudantes foram incentivadas(os) aapresentar textos em outras linguagens (vídeos, músicas, desenhos etc.) queexpressassem as temáticas analisadas e apresentadas pelos grupos, como uma formade mediação de leitura. Mediar a leitura é despertar no outro o desejo de ler. Ao trazeroutros textos, linguagens e mídias que dialogam com os contos e romances lidos, as(os)estudantes compartilham outros olhares e ideias sobre um mesmo texto, convidandoas(os) demais leitoras(es) a olhar o texto sob a sua ótica.O compartilhamento de ideias e a diversidade de leituras apresentadas noseminário ampliaram os olhares das(os) estudantes para as três obras e também235contribuíram para aumentar o repertório de linguagens e de intertextos para aprodução de book trailers sobre um dos livros lidos, à escolha de cada grupo.De acordo com as professoras idealizadoras do projeto, a apresentação oral játem seu lugar garantido nas práticas letradas escolares. O seminário é uma dessaspráticas orais escolares. Tomá-lo como uma etapa do projeto (e não mais como produtofinal) e dar sequência a ele para a elaboração de um novo produto que se beneficia damultissemiose presente nas apresentações orais é dar um passo à frente no diálogoentre a literatura e os multiletramentos, tão presentes na Base Nacional ComumCurricular (BRASIL, 2018) de Língua Portuguesa.A escolha do gênero book trailer se deu por algumas razões: a linguagemmultissemiótica que utiliza; a circulação em meios digitais, com os quais as(os)estudantes estão bastante familiarizadas(os); a possibilidade de promover o trabalho deleitura e de escrita de forma interativa e colaborativa entre as(os) estudantes e oenvolvimento de várias práticas letradas que, por sua vez, envolvem gêneros textuaisdiversos, que auxiliam na produção do gênero central (escrita colaborativa, elaboraçãode sinopse, pesquisa de imagens relacionadas à narrativa, análise e seleção de cançõespara fundo musical, elaboração do roteiro do vídeo, elaboração do story board, ediçãodo vídeo, etc.).De acordo com Rojo e Barbosa (2015), hoje em dia, os sujeitos não apenasconsomem produtos disponíveis na internet. Eles interagem com o conteúdo existentena rede, comentando e compartilhando e, também, os publicam. É a chamada web 2.0.Nas palavras de Rojo (2013), a(o) internauta atual é um “lautor”, pois ela/ele éleitor/consumidor, mas também é autor/produtor desses conteúdos. Associando atecnologia e a literatura, a criação de trailers de livros se alinha a esse perfil de lautor,236dando voz às leituras subjetivas das(os) estudantes e mobilizando conhecimentos sobregêneros textuais de diversos campos de atuação.Assim, o projeto parte de gêneros já trabalhados pela escola e que circulampredominantemente em meios impressos, mas envolve práticas letradas que convocamoutros gêneros multissemióticos e de circulação digital, numa demonstração clara dapossibilidade de diálogo entre o letramento da letra e os multiletramentos, entremultiletramentos e a leitura literária. Ou seja, práticas letradas digitais e, geralmente,distantes das atividades escolares podem ser incorporadas aos projetos, sem que sesubstituam as práticas já consolidadas pela escola.Vale salientar, ainda, que cada gênero textual envolvido no projeto e poucoconhecido pelas(os) estudantes pode constituir uma Sequência Didática específica, naqual é estudado dentro de um contexto de uso e não apenas por determinaçãocurricular.As culturas que perpassam o projetoUma das características da Pedagogia de Projetos é o trabalho contextualizado erelacionado a questões de interesse das(os) estudantes, envolvendo a cultura local e avalorização da identidade da comunidade escolar. O projeto contempla essacaracterística, ao trazer obras literárias que abordam temáticas próximas à realidadeda turma, como as questões sociais, raciais e de gênero, mencionadas anteriormente, eao incluir as suas vivências de leituras em outras linguagens e em outros gêneros, paradialogar com as leituras realizadas, fazendo delas ferramentas de apoio à compreensãodas obras. Nessa perspectiva, a cultura local e as culturas juvenis, especialmente a237culturadigital, ganham lugar no projeto e atuam em prol da formação do(a) leitora(or)literária(o).Ao estabelecer o diálogo entre a literatura e as tecnologias digitais, com aproposta de produção do book trailer, as culturas juvenis são, novamente,contempladas no projeto. A produção também dá mais protagonismo as(aos)estudantes que, por meio do vídeo, vão apresentar os seus olhares sobre as obras deConceição Evaristo, ressignificando as práticas escolares de leitura literária.O trabalho em grupo e colaborativo também constitui um aspecto cultural dosmodos como as(os) jovens lidam com desafios tecnológicos, para os quais osconhecimentos individuais se somam e se transformam na busca de soluções. Muitasvezes a colaboração vem mesmo de grupos de redes sociais ou de tutoriais disponíveisno mundo virtual, numa demonstração de que o mundo digital é, dentre outrascaracterísticas, colaborativo.Por fim, o fato de o book trailer circular digitalmente exige sua publicação emcanais digitais ou redes sociais, confirmando a cultura da web 2.0, em que as(os)internautas não apenas consomem, mas também produzem conteúdos para a internet.Um olhar para os conhecimentos construídos no projeto: a avaliaçãoAvaliar é compreender o processo pelo qual a(o) estudante constróiconhecimentos. É conhecer os desafios com que se depara e os recursos que mobilizapara superá-los. Também é o processo pelo qual educadoras(es) refletem sobre suaprática pedagógica, avaliando sua efetividade e os obstáculos a serem superados.238A avaliação dos trabalhos e das ações envolvidas neste projeto consideraram oaspecto formativo e processual da avaliação da aprendizagem, com destaque para ocaráter ativo das atividades propostas, permitindo à(ao) professora(or) analisar odesempenho das(os) estudantes na participação e execução de cada etapa. Assim, nãoapenas a produção final foi avaliada, mas todo o processo, com base nos objetivostraçados para o projeto, na participação e envolvimento das(os) alunas(os) nas leiturase no desenvolvimento das atividades relacionadas à leitura.Como projeto que tinha diferentes objetivos voltados para a formação da(o)leitora(or) literária(o), as atividades propostas constituíram objeto de avaliação quantoà sua contribuição para os objetivos delineados, assim como às metodologias utilizadase sua contribuição para o engajamento das(dos) estudantes.A avaliação no processo possibilita a tomada de novos rumos ainda no caminhar,de modo a alcançar os objetivos. Assim, além da análise da qualidade interacional e dacompreensão leitora a cada etapa do projeto, também os pequenos produtos, passospara se atingir um produto final maior, foram avaliados, no sentido de se identificardesafios e oferecer recursos imediatos.A preparação e realização do seminário, por exemplo, contou com habilidadesrelacionadas e previstas na BNCC, que serviram como referências para avaliação dapesquisa e organização das informações para uma apresentação oral, além, é claro, doconteúdo do seminário. Aspectos relacionados à oralidade e à apresentação oraltambém integraram os critérios de avaliação do projeto, fornecendo elementos para aanálise do trabalho com o eixo de ensino. Entretanto, um aspecto não considerado noprojeto e que pode ser incluído em outras edições foi a avaliação da(o) própria(o)239estudante quanto à contribuição do seminário para sua formação - seja comoparticipante de seminários, seja como leitora(o) literária(o).O planejamento e elaboração do book trailer, os gêneros auxiliares e a atuaçãodas(os) estudantes na tarefa constituíram objeto de avaliação, que possibilitaramintervenções durante o processo, fazendo da avaliação um importante recurso napromoção da aprendizagem.Quanto ao produto book trailer, um olhar discursivo sobre as cenas selecionadas,as linguagens usadas e o que o trailer diz à(ao) espectadora(or) pode ser o caminhopara uma avaliação que não se prenda a questões exclusivamente gramaticais e/outécnicas, mas que valorize a interlocução com a(o) leitora(or)/espectadora(or).Por fim, destacamos a importância do fortalecimento da cultura da revisãotextual, por meio de um roteiro de revisão, que inclua características do gênero textualespecífico, diferentes aspectos envolvidos no texto, como a intenção comunicativa, aadequação da linguagem e dos registros usados, os recursos linguísticos e multimodais,a correção ortográfica, a clareza, etc. Escrever é sempre reescrever e o ir e vir do textoentre estudantes e professora(or), característico do processo de produção de textosverbais escritos, é, também, um processo natural de textos constituídos de diferenteslinguagens, como os vídeos de book trailers.Referências bibliográficasBRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.EVARISTO, C. Olhos d’água. Rio de Janeiro. Pallas, 2016.EVARISTO, C. Becos da Memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006.240EVARISTO, C. Ponciá Vicêncio. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.ROJO, R.; BARBOSA, J. Hipermodernidade, multiletramentos e gêneros discursivos. SãoPaulo: Parábola Editorial, 2015. P.150.ROJO, R. Gêneros discursivos do Círculo de Bakhtin e multiletramentos. In.; ROJO, R. (Org).Escol@ conectada: os multiletramentos e as TICs. São Paulo: Parábola Editorail, 2013, pp.13-36.Sobre as autorasElaine Valério de Azevedo é licenciada plena em Letras (UFPA). Especialista em LínguaPortuguesa e Análise Literária (UEPA). Mestre em Estudos Literários (UFPA). É professorade Língua Portuguesa e suas Literaturas no Sistema Educacional Interativo (SEDUC-PA).Marilane Gondim Leite é licenciada em Letras Português-Francês (UFC) e especialistaem Informática Educativa (UEVA). Professora de Língua Portuguesa da EEEP DarcyRibeiro com experiência em oficina de produção textual.Karla Rossana Rodrigues de Souza é licenciada em Letras (UFPE) e em Pedagogia(UFPE), especialista em Linguística Aplicada ao Ensino da Língua Portuguesa (FAFIRE) eNeuropsicopedagogia (ALPHA). É mestre em Letras (PROFLETRAS - UFPE) e atualmenteé professora da rede estadual de Pernambuco e da rede municipal de Jaboatão dosGuararapes - PE.Sobre a editora do projeto de escritaJordana Lima de Moura Thadei é mestre em Linguística Aplicada e Estudos daLinguagem (PUC-SP), e mediadora do curso "Caminhos da escrita".2413.4Leitura literária: debatendo a violência nas escolas pormeio da literaturaLara Rocha e Eduarda Ribeiro[Público-alvo] Estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental. Essa sequência didáticapode ser adaptada também para o Ensino Médio.[Duração] 5 a 8 aulas[Alinhamento à BNCC] 3 Competências | 3 HabilidadesIntroduçãoNos últimos anos percebemos que os noticiários foram tomados por episódiosdevastadores de violência escolar. Nós, atuantes na educação, nos vimos num misto deangústia, impotência e despreparo para lidar com situações que até então pareciamdistantes da realidade brasileira. Sabemos bem que para resolver questões estruturaiscomo a violência são necessárias ações coletivas e organizadas de longo prazo, masnão é possível que o tema passe despercebido nas salas de aula. Assim, a partir daliteratura, propomos aqui um trabalho de sensibilização. Nosso objetivo não é encerrar odebate, ou resolver a violência escolar, até porque não é tão simples. Mas instigar um242olhar cuidadoso para o tema, tendo a literatura afrofuturista de Octavia Butler como umdisparador.***Octavia E. Butler, em uma imagem da década de 1980105O desejo de criar universos faz parte do espírito que permeia o afrofuturismo106,tendência que tem ganhado cada vez mais força e que foi fortemente influenciada pelaliteratura de Butler. Podemos observar esse movimento no conto "Sons da Fala"106Segundo o dicionário da Academia Brasileira de Letras, o Afrofuturismo é um movimento cultural,estético e político estabelecido a partir da perspectiva negra, que utiliza elementosda fantasia e daficção científica para construir narrativas que reconhecem e valorizam a identidade, ancestralidade ehistória negra. Obras afrofuturistas tendem a retratar um futuro imponente, permeado por tecnologiasavançadas e próximo da superação do racismo.105 Imagem disponível no artigo "Octavia E. Butler: a ressurreição da grande dama da ficção científica",publicado no jornal El País. Disponível no link:https://brasil.elpais.com/cultura/2020-07-25/octavia-e-butler-a-ressurreicao-da-grande-dama-da-ficcao-cientifica.html243https://brasil.elpais.com/cultura/2020-07-25/octavia-e-butler-a-ressurreicao-da-grande-dama-da-ficcao-cientifica.htmlhttps://brasil.elpais.com/cultura/2020-07-25/octavia-e-butler-a-ressurreicao-da-grande-dama-da-ficcao-cientifica.html(2019)107. Neste conto, que é um dos que a autora chamou de “contos de verdade”, Rye(personagem principal) após uma pandemia misteriosa, perde seu marido e filhos, bemcomo sua capacidade de ler e escrever, e a liberdade de falar. Nessa pandemia, umprovável vírus afeta irreversivelmente a aptidão de comunicar-se através da fala e/ouda escrita e, aqueles que conseguiram conservar mesmo que um resquício dessashabilidades, correm um risco ainda maior que os demais, isso porque ao menor sinal desociabilidade, aqueles que a perderam por completo são dominados por um sentimentoincontrolável de ódio e inveja que os leva a um enfrentamento violento cujo resultado équase sempre fatal. Sendo assim, para Rye restou o silêncio, mesmo quando ela aindapode falar.O conto inicia com Rye em meio a uma confusão generalizada em um ônibus e,para se salvar, ela aceita a carona de um desconhecido e viajam juntos em busca dasobrevivência. A descrição aponta para um mundo que parece uma paródia distópicado nosso, em que uma simples viagem para obter suprimentos torna-se uma jornadaperigosa.Outro ponto importante é que só a Rye e duas outras personagens que aparecemno final são nomeadas (ela imagina um nome para o homem que encontra). Nessarealidade criada pela Octavia Butler, a humanidade está desprovida daquilo que a tornaúnica: sua individualidade. Nenhuma instituição funciona e o que impera é a luta pelasobrevivência.107 Disponivel no link:https://viewer.joomag.com/projeto-c%C3%A1psula-sons-da-fala-octavia-e-butler/0561402001568660208244https://viewer.joomag.com/projeto-c%C3%A1psula-sons-da-fala-octavia-e-butler/0561402001568660208https://viewer.joomag.com/projeto-c%C3%A1psula-sons-da-fala-octavia-e-butler/0561402001568660208A ausência da linguagem verbal é central para compreender a (des)organizaçãoda narrativa e pode mover potentes reflexões em sala de aula. A dificuldade dacomunicação enquanto impulsionador da violência, embora em um universo distópico,pode se aproximar, em diferentes aspectos, das angústias presentes no cotidianoescolar. Sobretudo no pós-pandemia, sentimos que o comportamento explosivo,violento, está insistentemente presente na escola. Seja pelo contexto social brasileiroque afeta diretamente nossas(os) estudantes, pelo período de isolamento que mexeucom a socialização, ou pelo afastamento do dia-a-dia escolar, percebemos quecrianças e jovens têm sofrido psicologicamente, e a forma de externalizar suas doresse dá raramente pela fala. Esta é uma reflexão complexa, cheia de variáveis e semsoluções imediatas. Assim, um dos caminhos para a abertura de diálogos possíveispode ser o de promover paralelos entre o mundo distópico de Butler e a realidadepós-pandemia brasileira, possibilitando o olhar para si e para o outro a partir da ficção.O universo proposto por Octavia Butler tem forte potencial de atrair o interessedos estudantes: o universo distópico, a trama misteriosa e a narrativa instigante. Porisso, criamos uma sequência didática cujo objetivo é instigar a reflexão sobre o poderda comunicação, violência e sonho, a partir do conto de Octavia e de conceitos comodistopia e afrofuturismo. Assim, visamos incentivar a leitura, a alteridade, o olhar paraa subjetividade e a interação entre estudantes e docentes.245Por uma mediação de temas sensíveis…A literatura nos oferece a oportunidade de conhecer o real por intermédio doimaginário e pode, portanto, se constituir como um espaço seguro para explorartemas difíceis na escola.Para realizar a mediação de obras que abordam questões sensíveis com sua turma éimportante:- se planejar:Pensar quem é o público dessa leitura, buscar uma boa apropriação do livro – ou dotexto – e das temáticas que ele aborda, além de propor questões que permitam areflexão, e não apenas uma exploração objetiva da narrativa (quem são ospersonagens principais, onde a história se passa, etc), fazem parte de um bomplanejamento. No caso de as conversas entabuladas com as alunas e alunos tomaremum rumo inesperado ou causarem algum tipo de desconforto (em você, professora(or),ou em alguém de sua turma), retome o diálogo estabelecendo comparações com oselementos presentes na narrativa, ou seja, recorrendo ao universo literáriocompartilhando no texto que está sendo lido ou discutido.- cuidar da construção do espaço de leitura:Não se trata apenas de buscar um espaço físico que permita as(os) estudantesconstruírem uma relação mais dialógica com a leitura, como por exemplo um pátioaberto ou uma sala onde seja possível sentar em roda, mas também promover umaescuta aberta, tanto para a voz quanto para o corpo que age e reage às interlocuçõescom o texto. Validar sensações, experiências e percepções individuais sem avaliar asinterpretações da turma, estar preparada(o) e aberta(o) para opiniões divergentes e246permitir momentos de silêncio – prescindindo da urgência de sempre preenchê-los –são algumas posturas que você pode adotar nas rodas de leitura.Recursos materiais necessáriosCópias do conto “Sons da fala”, de Octavia Butler, disponibilizado pelo ProjetoCápsula108.BNCCCompetências Específicas de Língua Portuguesa:Competência específica n° 7Reconhecer o texto como lugar de manifestação e negociação de sentidos, valores eideologias.Competência específica n° 8Selecionar textos e livros para leitura integral, de acordo com objetivos, interesses eprojetos pessoais (estudo, formação pessoal, entretenimento, pesquisa, trabalho etc.).Competência específica n° 9Envolver-se em práticas de leitura literária que possibilitem o desenvolvimento do sensoestético para fruição, valorizando a literatura e outras manifestações artístico-culturais108 Disponível no link:https://viewer.joomag.com/projeto-c%C3%A1psula-sons-da-fala-octavia-e-butler/0561402001568660208247https://viewer.joomag.com/projeto-c%C3%A1psula-sons-da-fala-octavia-e-butler/0561402001568660208https://viewer.joomag.com/projeto-c%C3%A1psula-sons-da-fala-octavia-e-butler/0561402001568660208https://viewer.joomag.com/projeto-c%C3%A1psula-sons-da-fala-octavia-e-butler/0561402001568660208https://viewer.joomag.com/projeto-c%C3%A1psula-sons-da-fala-octavia-e-butler/0561402001568660208como formas de acesso às dimensões lúdicas, de imaginário e encantamento,reconhecendo o potencial transformador e humanizador da experiência com aliteratura.Práticas de linguagem / Objetos do conhecimento:● LeituraObjetos de conhecimento:1. Estratégias de leitura;2. Apreciação e réplica;3. Reconstrução das condições de produção, circulação e recepção.Habilidades:(EF69LP44) Inferir a presença de valores sociais, culturais e humanos e de diferentesvisões de mundo, em textos literários, reconhecendo nesses textos formas deestabelecer múltiplos olhares sobre as identidades, sociedades e culturas econsiderando a autoria e o contexto social e histórico de sua produção.(EF69LP46) Participar de práticas de compartilhamento de leitura/recepção de obrasliterárias/manifestações artísticas, como rodas de leitura, clubes de leitura, eventosde contação de histórias, de leituras dramáticas, de apresentações teatrais,musicaise de filmes, cineclubes, festivais de vídeo, saraus, slams, canais de booktubers, redessociais temáticas (de leitores, de cinéfilos, de música etc.), dentre outros, tecendo,quando possível, comentários de ordem estética e afetiva e justificando suas248apreciações, escrevendo comentários e resenhas para jornais, blogs e redes sociais eutilizando formas de expressão das culturas juvenis, tais como, vlogs e podcastsculturais (literatura, cinema, teatro, música), playlists comentadas, fanfics, fanzines,e-zines, fanvídeos, fanclipes, posts em fanpages, trailer honesto, vídeo-minuto,dentre outras possibilidades de práticas de apreciação e de manifestação da culturade fãs.(EF89LP33) Ler, de forma autônoma, e compreender – selecionando procedimentos eestratégias de leitura adequados a diferentes objetivos e levando em contacaracterísticas dos gêneros e suportes – romances, contos contemporâneos,minicontos, fábulas contemporâneas, romances juvenis, biografias romanceadas,novelas, crônicas visuais, narrativas de ficção científica, narrativas de suspense,poemas de forma livre e fixa (como haicai), poema concreto, ciberpoema, dentreoutros, expressando avaliação sobre o texto lido e estabelecendo preferências porgêneros, temas, autores.Objetivos gerais1. Conhecer a autora Octavia Butler e os conceitos "distopia" e "afrofuturismo"presentes em sua obra.2. Realizar uma leitura coletiva do conto "Sons da fala", de Octavia Butler.3. Refletir, a partir da leitura literária realizada, sobre a violência que vemacometendo o espaço escolar e abrir um diálogo com as(os) estudantes sobre aescola que elas(es) sonham.249Roteiro de atividades1ª Etapa: Octavia Butler: “a grande dama da ficção científica” (1 aula)Objetivo:● Apresentar a biografia e obra de Octavia Butler, considerando o contexto em queviveu e as principais características de suas obras.Atividades:Em sala, apresente um pouco da trajetória de Octavia Butler. Trazemos aqui algumasinformações interessantes:Conhecida como a Grande Dama da ficção científica, Octavia Butler nasceu em1947 nos Estados Unidos da América. Filha de uma empregada doméstica e de umengraxate, ela decidiu ser escritora aos 12 anos, após assistir um filme que achou muitoruim e decidir que escreveria uma história melhor. Ao longo da sua carreira, a escritoraenfrentou muito preconceito por ser mulher, negra, pobre e, além disso, uma mulher,negra, pobre que escrevia ficção científica.Mesmo com todos esses desafios, Octavia Butler continuou a produzir, não portalento ou inspiração, segundo ela, mas para praticar. Em seu ensaio de orientação paranovos escritores, Furor Scribendi (1993), ela defende que o primeiro passo para aescrita é a leitura, então seu primeiro conselho é:250"Leia. Leia sobre arte, artesanato e o negócio da escrita. Leia o tipo de obra quevocê gostaria de escrever. Leia boa e má literatura, ficção e realidade. Leia todos osdias e aprenda com o que leu".Octavia Butler dizia não acreditar em inspiração e talento, mas sim na força dohábito. Assim como defendia que o aprendizado é algo contínuo. Ela se denominavaessencialmente como romancista e dizia odiar escrever contos, mas mesmo assimcontinuava a escrever enfrentando seu desespero e frustração, tendo como resultadodessa perseverança, vez ou outra, um “conto de verdade”.● É importante situar a turma sobre o contexto histórico no qual Octavia Butlerescreveu, lembrando que era o auge da segregação racial nos EUA. Para sabermais sobre o tema, acesse: Entenda o que foram as Leis Jim Crow nos EstadosUnidos | Politize!109.● Para mais informações, você pode acessar esta matéria publicada no portal daUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que inclui uma entrevista em áudiocom o escritor e pesquisador Waldson Souza sobre a escritora: UFMG -Universidade Federal de Minas Gerais - 75 anos de Octavia E. Butler, a “grandedama da ficção científica”110.● Se for viável, você pode exibir o vídeo OCTAVIA BUTLER E SUAS OBRAS111, do canalOmeleteve.111 Disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=d9CzyZCZrgE110 Disponível no link:https://ufmg.br/comunicacao/noticias/75-anos-de-octavia-e-butler-a-grande-dama-da-ficcao-cientifica109 Disponível no link: https://www.politize.com.br/leis-jim-crow/251https://www.politize.com.br/leis-jim-crow/https://www.politize.com.br/leis-jim-crow/https://ufmg.br/comunicacao/noticias/75-anos-de-octavia-e-butler-a-grande-dama-da-ficcao-cientificahttps://ufmg.br/comunicacao/noticias/75-anos-de-octavia-e-butler-a-grande-dama-da-ficcao-cientificahttps://ufmg.br/comunicacao/noticias/75-anos-de-octavia-e-butler-a-grande-dama-da-ficcao-cientificahttps://www.youtube.com/watch?v=d9CzyZCZrgEhttps://www.youtube.com/watch?v=d9CzyZCZrgEhttps://ufmg.br/comunicacao/noticias/75-anos-de-octavia-e-butler-a-grande-dama-da-ficcao-cientificahttps://www.politize.com.br/leis-jim-crow/O vídeo a seguir apresenta um pouco das características literárias de Butler, além deinformações sobre sua vida. Embora o áudio esteja em inglês, é possível ativar aslegendas em português. Se possível, exiba-o para a turma.Why should you read sci-fi superstar Octavia E. Butler?112 (tradução livre: Por quevocê deve ler a dama da ficção científica Octavia E. Butler?)Roteiro: Ayana Jamieson e Moya Bailey | Direção: Tomás Pichardo-Espaillat (4 min 14seg).2ª Etapa: Conhecendo os “sons da fala” (1 aula)Objetivo:● Propiciar a primeira conexão da turma com o texto a partir da leitura em grupos.Atividades:1. Divida a sala em grupos. Entregue para cada grupo uma cópia do trecho inicial doconto "Sons da fala" (sugestão: da página 1 até a 4), para que, em um primeiromomento, seja feita uma leitura coletiva do conto. Ao final da leitura, peça queconversem entre si sobre as impressões.112 Disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=X6YI8lsjJJA252https://www.youtube.com/watch?v=X6YI8lsjJJAhttps://www.youtube.com/watch?v=X6YI8lsjJJACaso a turma tenha acesso a tablet/computador, disponibilize o texto113 integralmentepara que possam seguir a leitura em casa.Peça que cada grupo defina uma ou duas pessoas responsáveis por registrar e, emseguida, compartilhar com a turma os pontos que chamaram atenção. Como o contoescolhido é cheio de nuances, detalhes subentendidos, pode ser interessante umaprimeira leitura livre, observando com atenção quais são os pontos destacados pelosgrupos.O conto "Sons da fala" foi publicado originalmente no livro "Filhos de sangue eoutras histórias". Imagem retirada do site da editora Morro Branco.2. Instigue o grupo a partir de algumas questões sobre a situação inicial da narrativa:○ Por que vocês imaginam que começou a confusão?113 Disponível no link:https://viewer.joomag.com/projeto-c%C3%A1psula-sons-da-fala-octavia-e-butler/0561402001568660208253https://viewer.joomag.com/projeto-c%C3%A1psula-sons-da-fala-octavia-e-butler/0561402001568660208https://viewer.joomag.com/projeto-c%C3%A1psula-sons-da-fala-octavia-e-butler/0561402001568660208○ Por que vocês acham que as pessoas não interviram?○ Para descrever os sons emitidos pelas personagens, a autora utilizaverbos como “guinchavam”, “urravam”, “soltavam ruídos”... que sensaçãoessa escolha lexical transmite?○ Por que vocês imaginam que ela escolheu estas palavras?○ Qual é a principal característica dessas personagens?○ Quais são os elementos que compõem esta obra? Ex.: enredo,personagens, espaço, tempo e narrador.É importante que, ao final desta aula, o grupo compreenda de que maneira asinformações apresentadas constroem a situação inicial do conto.3. Levante hipóteses entre os grupos sobre o que imaginam ser os próximosacontecimentos da narrativa3ª Etapa: O enredo afrofuturista de Octavia Butler (1 a 2 aulas)Objetivos:● Apresentar o conceito “Distopia” e “Afrofuturismo”, conectando-os com oselementos da narrativa.● Dar continuidadesolitário equase heróico de profissionais mais sensíveis ao tema seja suficiente é impor aprofessoras e professores uma sobrecarga ainda maior de trabalho.Entre as conquistas e os desafios a superar, como é em todo aniversário, os 20anos da Lei 10.639 e os 15 anos da Lei 11.645 devem ser celebrados porque elesrepresentam significativos avanços na luta pelo direito à igualdade. A existência destasduas leis lembram-nos de que a luta por direitos humanos e dignidade sempre vale apena! Todos nós, professoras e professores da educação básica devemos sentir orgulhopor ser parte desta história e, mais ainda, sentir orgulho por continuar trabalhandopara que o cumprimento da lei siga sendo fortalecido em cada unidade de ensino dopaís.Existe um provérbio africano que diz: “A água que segue um curso diferenteencontra paisagens inexploradas, cria novos rumos e novas possibilidades”. Assim,quanto à educação para as relações étnico-raciais, que possamos celebrar as águasque nos trouxeram até aqui, mas que sejamos capazes, também, de criar novos rumos epossibilidades que fortaleçam ainda mais o nosso trabalho na defesa de uma educaçãodiversa, inclusiva, plural, democrática, emancipatória e antirracista.21E você, professora e professor, que história tem para contar quanto à aplicaçãodas Leis 10.639 e 11.645 em seu fazer pedagógico?Sobre a autoraGina Vieira Ponte de Albuquerque é ceilandense, atuou como professora da educaçãobásica na Secretaria de Educação do Distrito Federal por mais de 30 anos. É graduadaem Letras pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Pela Universidade de Brasília(UnB), é mestra em Linguística, com ênfase em Análise de Discurso Crítica, especialistaem EAD, em Desenvolvimento Humano, Educação e Inclusão Escolar e em Letramentos ePráticas Interdisciplinares nos Anos Finais. Autora do Projeto Mulheres Inspiradoras,agraciado com 15 prêmios, entre eles, o I Prêmio Ibero-americano de Educação emDireitos Humanos.222.2Feminismo negro – para um novo marco civilizatórioDjamila RibeiroÉ essencial para o prosseguimento da luta feminista que as mulheres negrasreconheçam a vantagem especial que nossa perspectiva de marginalidade nosdá e façam uso dessa perspectiva para criticar a dominação racista, classista esexista, para refutá-la e criar uma contra-hegemonia. Estou sugerindo quetemos um papel central a desempenhar na realização da teoria feminista e umacontribuição a oferecer que é única e valiosa.bell hooksEssa citação de bell hooks sintetiza a importância do feminismo negro para odebate político. Pensar como as opressões se combinam e se entrecruzam, gerandooutras formas de opressão, é fundamental para se considerar outras possibilidades deexistência. Além disso, o arcabouço teórico e crítico trazido pelo feminismo negro servecomo instrumento para se pensar não apenas sobre as próprias mulheres negras,categoria também diversa, mas sobre o modelo de sociedade que queremos.Mulheres negras vêm historicamente pensando a categoria “mulher” de formanão universal e crítica, apontando sempre para a necessidade de se perceber outraspossibilidades de ser mulher. Angela Davis é uma pensadora que, mesmo antes de oconceito de interseccionalidade ser evidenciado, considerava as opressões estruturaiscomo indissociáveis. Em Mulheres, raça e classe, de 1981, ela enfatiza a importância deutilizar outros parâmetros para a feminilidade e denuncia o racismo existente no23movimento feminista, além de fazer uma análise anticapitalista, antirracista eantissexista.Apesar de várias feministas negras já se utilizarem de uma análiseinterseccional antes disso, o conceito só foi cunhado em 1989, por Kimberlé Crenshaw,em sua tese de doutorado.“A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar asconsequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos dasubordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, opatriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criamdesigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças,etnias, classes e outras.”Pensar a interseccionalidade é perceber que não pode haver primazia de umaopressão sobre as outras e que é preciso romper com a estrutura. É pensar que raça,classe e gênero não podem ser categorias pensadas de forma isolada, porque sãoindissociáveis.No Brasil, o feminismo negro começa a ganhar força nos anos 1980. SegundoNúbia Moreira:“a relação das mulheres negras com o movimento feminista se estabelece apartir do III Encontro Feminista Latino-Americano ocorrido em Bertioga em1985, de onde emerge a organização atual de mulheres negras com expressãocoletiva com o intuito de adquirir visibilidade política no campo feminista. Apartir daí, surgem os primeiros coletivos de mulheres negras, época em queaconteceram alguns encontros estaduais e nacionais de mulheres negras.”Surgem organizações importantes como o Geledés, Fala Preta, Criola, além de24inúmeros coletivos e de uma vasta produção intelectual. Nesse sentido, Lélia Gonzalessurge como um grande nome a ser debatido e estudado. Além de colocar a mulhernegra no centro do debate, ela vê a hierarquização de saberes como produto daclassificação racial da população, uma vez que o modelo valorizado e universal ébranco. Segundo essa autora, o racismo se constituiu “como a ‘ciência’ da superioridadeeurocristã (branca e patriarcal), na medida em que se estruturava o modelo ariano deexplicação”.Dentro da mesma lógica, a teoria feminista também acaba incorporando isso eestruturando o discurso das mulheres brancas como dominante. Assim, contradiscursose contranarrativas não são importantes somente num sentido epistemológico, mastambém no de reivindicação de existência. A invisibilidade da mulher negra dentro dapauta feminista faz com que ela não tenha seus problemas nem ao menos nomeados. Enão se pensa em saídas emancipatórias para problemas que nem sequer foram ditos. Aausência também é ideologia.Muitas feministas negras pautam a questão da quebra do silêncio comoprimordial para a sobrevivência das mulheres negras. Angela Davis, Audre Lorde e AliceWalker abordam a importância do falar em suas obras. “O silêncio não vai te proteger”,diz Lorde. “Não pode ser seu amigo quem exige seu silêncio”, diz Walker. “A unidadenegra foi construída em cima do silêncio da mulher negra”, diz Davis. Essas autorasestão falando sobre a necessidade de não se calar ante opressões como forma demanter uma suposta unidade entre grupos oprimidos, ou seja, alertam para aimportância de que ser oprimido não pode ser utilizado como desculpa para legitimar aopressão.25A questão do silêncio também pode ser estendida a um silêncio epistemológico ede prática política dentro do movimento feminista. O silêncio em relação à realidade dasmulheres negras não as coloca como sujeitos políticos. Um silêncio que, por exemplo, fezcom que nos últimos dez anos o número de assassinatos de mulheres negras tenhaaumentado quase 55%, enquanto o de mulheres brancas caiu em 10%, segundo o Mapada Violência de 2015.Falta um olhar étnico-racial para políticas de enfrentamento da violência contraa mulher. A combinação de opressões coloca a mulher negra num lugar no qual somentea interseccionalidade permite uma verdadeira prática, que não negue identidades emdetrimentos de outras.A pesquisadora Grada Kilomba afirma:“Por não serem nem brancas nem homens, as mulheres negras ocupam umaposição muito difícil na sociedade supremacista branca. Representamos umaespécie de carência dupla, uma dupla alteridade, já que somos a antítese deambos, branquitude e masculinidade. Nesse esquema, a mulher negra só podeser o outro, e nunca si mesma. […] Mulheres brancas têm um oscilante status,enquanto si mesmas e enquanto o “outro” do homem branco, pois são brancas,mas não homens;à leitura do conto, a partir da estratégia de leituraprotocolada.Atividades:2541. Comece a aula retomando oralmente a leitura da aula anterior: do que se lembram?Talvez alguém já tenha compreendido e compartilhado a hipótese de que aspersonagens do conto não podem falar. Se tiverem, pergunte que relação a ausênciade fala pode ter com o comportamento violento de parte das personagens ou com asituação de destruição que acometeu a cidade.Caso ninguém tenha falado sobre isso, questione sobre que fator pode ter levado aspersonagens a se comportarem de maneira tão agressiva no ônibus, local onde sedesenrola a situação inicial do conto.2. Apresente para a turma o conceito de distopia114. Reflita sobre o mundo distópicoapresentado pela autora e sobre quais elementos nos transmitem a sensação dedestruição, animalização, autoritarismo e opressão que compõem este universo.A ideia de um vírus que assola a população, leva à destruição das cidades e, aospoucos, à perda da humanidade, ao mesmo tempo que parece ser muito distante,possui fortes conexões com o que vivemos em 2020. Busque traçar associações quepermitam a compreensão de sua turma, reforçando a noção de verossimilhançapresente na narrativa.Busque também dialogar sobre o cenário de violência apresentado e de que maneiraele se aproxima do nosso cotidiano.114 Disponível no link:https://tab.uol.com.br/faq/um-mundo-de-sofrimento-e-autoritarismo-o-que-e-uma-distopia.htm255https://tab.uol.com.br/faq/um-mundo-de-sofrimento-e-autoritarismo-o-que-e-uma-distopia.htmhttps://tab.uol.com.br/faq/um-mundo-de-sofrimento-e-autoritarismo-o-que-e-uma-distopia.htm3. Em seguida, retome elementos já apresentados sobre a autora Octavia Butler e suaproposta literária. Conhecida como a Dama da Ficção Científica, Octavia foi uma dasprimeiras pessoas a propor o que hoje conhecemos como Afrofuturismo115. Este é umconceito importante na contemporaneidade e bastante presente na cultura pop – umexemplo são os filmes do herói Pantera Negra.A partir daí, reintroduza a narrativa e siga a leitura. A leitura em voz alta pode ser umbom caminho de aproximação da turma com a literatura de Octavia. Embora o contonão seja tão curto, vale a pena separar duas aulas para realizar a leitura integral daobra em sala de aula, aproveitando para ressaltar aspectos importantes durante aleitura.Leitura protocoladaA ‘leitura protocolada’ é uma estratégia interessante: a partir de perguntas feitasdurante a leitura, suscitamos a inferência e estimulamos a turma a acionar seusrepertórios prévios, articulando com as informações extraídas do texto.Essa estratégia contempla a habilidade EF69LP44 da Base Nacional ComumCurricular (BNCC), que consiste em “inferir a presença de valores sociais, culturaise humanos e de diferentes visões de mundo, em textos literários, reconhecendonesses textos formas de estabelecer múltiplos olhares sobre as identidades,sociedades e culturas e considerando a autoria e o contexto social e histórico desua produção.”115 Disponível no link:https://www.fundacaotelefonicavivo.org.br/noticias/afrofuturismo-o-que-e-o-movimento-e-como-esta-representado/256https://www.fundacaotelefonicavivo.org.br/noticias/afrofuturismo-o-que-e-o-movimento-e-como-esta-representado/https://www.fundacaotelefonicavivo.org.br/noticias/afrofuturismo-o-que-e-o-movimento-e-como-esta-representado/https://www.fundacaotelefonicavivo.org.br/noticias/afrofuturismo-o-que-e-o-movimento-e-como-esta-representado/https://www.fundacaotelefonicavivo.org.br/noticias/afrofuturismo-o-que-e-o-movimento-e-como-esta-representado/Assim, as alunas e os alunos aprendem, aos poucos, a ler as diferentes camadas dotexto, expandido a compreensão de seus sentidos.Leia mais sobre a leitura protocolada no artigo "Ensinar leitura lendo" (disponívelcomo Anexo II, na página 615 desta publicação), de Magda Soares.4. A leitura recomeça a partir da página 5 e pode seguir até a página 21. Façapausas para estimular a atenção e a compreensão:○ O que pode ter acontecido para que as pessoas deixassem de falar?○ Que estratégia as personagens usam para apresentar seus nomes?○ Qual a relação entre a violência e a incapacidade de falar?○ Qual é a importância da arma de fogo para Rye?○ Por que Rye fica com tanta raiva quando descobre que Obsidian sabia ler?○ Qual era o medo de Rye ao se envolver com Obsidian?○ O que Rye buscava em Pasadena? Por que ela desiste de ir para lá?5. Levante hipóteses sobre como imaginam que o conto terminará, ou seja, sobrecomo será seu desfecho.4ª Etapa: O desfecho da fala (1 a 2 aulas)Objetivos:● Concluir a leitura protocolada.● Aprofundar as reflexões sobre a trama.257Atividades:1. Retome a leitura da aula anterior, levantando os principais pontos abordados atéentão. Hoje, o objetivo é concluir a leitura do conto “Sons da fala”. Leia, seguindo aestratégia da leitura protocolada, as páginas 22 a 28.2. Peça que, durante a sua leitura, mantenham em mãos o caderno e a caneta, a fimde registrarem pontos que chamem a atenção.Lembre-se de fazer pausas para instigar a leitura a partir de questões:○ O que possivelmente aconteceu entre a mulher e o homem que estavamcorrendo na rua?○ Por que Obsidian decide parar?○ Que sentimento predominou em Rye quando ela percebe o que aconteceu comObsidian?○ Por que Rye cogita não levar as crianças?○ Por que uma das crianças diz que a outra não deve falar?○ Qual é a hipótese de Rye com relação ao que motivou a briga entre o homem ea mulher?○ Para ela, esta raiva que moveu o homem é algo distante e incompreensível ou éum sentimento partilhado por ela em alguns momentos?○ O que permite o vínculo entre Rye e as crianças?2585ª Etapa: A escola que sonhamos (1 a 2 aulas)Objetivos:● Refletir sobre a violência escolar a partir da leitura do conto “Sons da fala” daOctavia Butler.● Dialogar sobre a escola que sonhamos e de que maneira a violência tem nosimpedido de construí-la.Atividades:1. Durante a leitura, muitos aspectos já devem ter sido debatidos, então vale adaptaras questões deste encontro, considerando que o objetivo é aprofundar as reflexõessobre a falta de comunicação e a violência, aproximando do contexto escolar.Se for viável, você pode realizar esta conversa fora da sala de aula. Escolha umambiente agradável e acolhedor. Pode ser a sala de leitura, o pátio ou a quadra. Oprincipal é que a turma se sinta envolvida.Retome coletivamente a narrativa. Busque relembrar aspectos centrais do conto,como personagens, principais acontecimentos, desfecho…2. Em seguida, instigue o grupo a partir de algumas questões sobre a narrativa:○ Como a autora aborda a questão da linguagem e da comunicação no conto?259○ Qual é o papel dos "Sons da Fala" na história e como isso reflete a mensagemmais ampla do conto?○ De que maneira o conto aborda questões de poder e opressão em relação àlinguagem?○ Como as personagens principais do conto lidam com os desafios de secomunicar em um mundo onde a linguagem é restrita ou controlada?○ Existe alguma conexão entre o contexto apresentado, em que a dificuldade decomunicação instiga a violência, e situações presentes no ambiente escolar? Qual?○ Quais são os paralelos entre a restrição da linguagem no conto e as restriçõesculturais e sociais que podem contribuir para a violência escolar no Brasil?○ Como as personagens do conto resistem às restrições de comunicação, e deque maneira essa resistência pode ser relacionada à necessidade de fortalecimento edefesa dos direitos de estudantes no ambiente escolar?○ De que forma os rumos da narrativa podem servir de inspiração para lidarmoscom situações de violência escolar no Brasil?Este não é um debate simples e pode tocar em pontos sensíveis para a turma. Aviolência pode atravessar a vida de cada estudante de maneiras muito diferentes,então é importante que o debate seja realizado dehomens negros exercem a função de oponentes dos homensbrancos, por serem possíveis competidores na conquista das mulheres brancas,pois são homens, mas não brancos; mulheres negras, entretanto, não são nembrancas, nem homens, e exercem a função de o “outro” do outro.”Aqui, Kilomba discorda da categorização feita por Simone de Beauvoir. Para afilósofa francesa, não há reciprocidade: a mulher sempre é vista pelo olhar do homemnum lugar de subordinação, como o outro absoluto. Mas essa afirmação de Beauvoir dizrespeito a um modo de ser mulher – no caso, mulher branca. Kilomba, além de sofisticar26a análise, inclui a mulher negra em seu comparativo. Para ela, existe reciprocidade entremulher branca e homem branco e entre mulher branca e homem negro, existe um statusoscilante que pode permitir que a mulher branca se coloque como sujeito. Mas Kilombarejeita a fixidez desse status. Mulheres brancas podem ser vistas como sujeitos emdados momentos, assim como o homem negro. Já Beauvoir diz:“Ora, o que define de maneira singular a situação da mulher é que, sendo, comotodo ser humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se nummundo em que os homens lhe impõem a condição de outro. Pretende-setorná-la objeto, votá-la à imanência, porquanto sua transcendência seráperpetuamente transcendida por outra consciência essencial e soberana.”Kilomba, além de mostrar que mulheres possuem situações diferentes, rompecom a universalidade em relação aos homens também mostrando que a realidade doshomens brancos não é a mesma da dos homens negros, e que em relação a estesdeve-se fazer a pergunta: de quais homens estamos falando? Reconhecer o status demulheres brancas e homens negros como oscilante nos possibilita enxergar asespecificidades e romper com a invisibilidade da realidade das mulheres negras. ParaKilomba, ser essa antítese de branquitude e masculinidade impossibilita que a mulhernegra seja vista como sujeito. Nos termos de Beauvoir, seria a mulher negra, então, ooutro absoluto. Tanto o olhar de homens brancos quanto de negros e de mulheresbrancas confinaria a mulher negra a um local de subalternidade muito mais difícil de serultrapassado.27Numa sociedade de herança escravocrata, patriarcal e classista, cada vez maisse torna necessário o aporte teórico e prático que o feminismo negro traz parapensarmos um novo marco civilizatório.Referências bibliográficasBEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2ª- ed. Trad. de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 2009.CRENSHAW, Kimberlé Williams. “Demarginalizing the intersection of race and sex: Ablack feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory, and antiracistpolitics”. University of Chicago Legal Forum, 1989. Tese de doutorado.DAVIS, Angela. Women, race and class. Nova York: Random House, 1981.—. “As mulheres negras na construção de uma nova utopia”, in: Geledés Instituto daMulher Negra, 12/7/2011.—. Mulheres, raça e classe. Trad. de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.GONZALEZ, Lélia. “A categoria político-cultural de amefricanidade”. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, nº- 92/93, jan./jun., 1988, pp. 69-82. Disponível em. Acesso em 22/10/2024.HOOKS, bell. Feminism is for everybody: passionate politics. Londres: Pluto Express,2000.KILOMBA, Grada. Plantation memories: episodes of everyday racism. Münster: Unrast,2012.LORDE, Audre. “Textos escolhidos”.28https://pt.scribd.com/document/356271415/A-CategoriaPolItico-cultural-de-Amefricanidade-Leliahttps://pt.scribd.com/document/356271415/A-CategoriaPolItico-cultural-de-Amefricanidade-LeliaMOREIRA, Núbia Regina. “Representação e identidade no feminismo negro brasileiro”.Artigo apresentado no Seminário Internacional Fazendo Gênero, na UniversidadeFederal de Santa Catarina, Florianópolis, 7 de agosto de 2006.WAISELFISZ, Julio Jacobo. “Mapa da violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil”.Flacso Brasil.WALKER, Alice. A cor púrpura. 12ª- ed. Trad. de Betúlia Machado, Maria José Silveira ePeg Boldeson. Rio de Janeiro: José Olympio, 2016Sobre a autoraDjamila Ribeiro nasceu em Santos, em 1980. Mestre em filosofia política pelaUniversidade Federal de São Paulo (Unifesp), colunista do site da revista Carta Capital;foi secretária-adjunta da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo.Coordena a Coleção Feminismos Plurais, da Editora Letramento, pela qual lançou o livroO que é lugar de fala, em 2017.FonteArtigo publicado originalmente na Revista Na Ponta do Lápis (ano XIV – número 32,dezembro de 2018) – Compartilhar linguagens.292.3Unindo o discurso à prática: não basta ser antirracista.É preciso ler o que as autoras e autores negrosescrevemBel Santos MayerEste artigo propõe uma breve reflexão sobre o lugar ocupado pela literatura noenfrentamento do racismo e na promoção da igualdade racial. É um convite paraeducadoras e educadores refletirem sobre a presença (ou a ausência) da literatura deautoria negra no acervo da escola, na programação de suas aulas e em seu repertórioleitor.Repito para nós a pergunta do coletivo Mulheres Negras na Biblioteca: “Quantasautoras negras você já leu”? Com o objetivo de incentivar o conhecimento de escritorasnegras, a leitura de suas obras e sua inclusão nos acervos das bibliotecas, esse coletivopromove encontros e atividades culturais relacionadas ao tema. À sua perguntapoderíamos acrescentar: Quantas autoras(es) negras(os) você já indicou em suasaulas? Quantos livros de autoria negra você já leu com as(os) estudantes? O que issorepresenta dentro do número de obras indicadas por você?Seja qual for sua resposta, ela nos leva à reflexão sobre a presença e a ausênciade obras de autoria negra nas escolas, livrarias, bibliotecas, premiações literárias eoutros espaços correlatos. É provável que estejamos próximas(os) do que o Grupo de30Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília,coordenado pela Profa. Dra. Regina Dalcastagnè, vem pesquisando desde 2003. Aoanalisar 692 romances publicados por grandes editoras, escritos por 383 autoras(es)entre 1965 e 2014, concluíram que, em 43 anos, o perfil do romancista brasileiro semanteve estável: homens brancos, de classe média, moradores do Sudeste, narramhistórias de protagonistas e coadjuvantes brancos com poucas variações:Apesar de bastante homogêneos, os dados mostram um aumento de 12 pontospercentuais na publicação de romances escritos por mulheres – fato que, porsua vez, não produziu um crescimento significativo na quantidade depersonagens femininas. O que salta aos olhos – mas não surpreende – é a faltade mulheres e homens negros tanto na posição de autores (2%) como na depersonagens (6%). Mulheres negras aparecem como protagonistas em apenasseis ocasiões, e outras duas como narradoras das histórias. Mulheres brancas,por sua vez, ocuparam essas posições 136 e 44 vezes, respectivamente. Osautores vivem basicamente no Rio de Janeiro (33%), São Paulo (27%) e RioGrande do Sul (9%) (MASSUELA, Amanda, 2018).Uma representatividade de autoria negra incipiente, que somada à 5ª edição dapesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2021)4 pode nos levar à confirmação de quelemos pouco, lemos mal e lemos os mesmos. Será apenas isso? Tem gente nadandocontra essa corrente.4 A íntegra da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil pode ser acessada cadastrando-se no sitehttps://www.prolivro.org.br/5a-edicao-de-retratos-da-leitura-no-brasil-2/a-pesquisa-5a-edicao/.31https://www.prolivro.org.br/5a-edicao-de-retratos-da-leitura-no-brasil-2/a-pesquisa-5a-edicao/O Brasil que lê!Em 2020 a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a Universidade do Riode Janeiro (UNIRIO) e o Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), com o apoio do InstitutoC&A e do Itaú Social, realizaram umapesquisa junto às bibliotecas comunitárias paraavaliar dimensões de suas práticas de formação de leitoras(es). Os resultados forampublicados pela Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias e pelo CCLF sob o título: OBrasil Que Lê: Bibliotecas comunitárias e resistência cultural na formação de leitores5.No Brasil que lê há bibliotecas comunitárias gestadas especialmente por jovensque algum dia acharam que não gostavam de ler. Em algum lugar estava escrito que aliteratura não lhes pertencia. Tinham aprendido que a literatura era luxo ou algo paraquem tem tempo sobrando, coisa rara entre as(os) trabalhadoras(es) braçais.Porém, essas(es) jovens se encontraram com outras(os) jovens que acreditavamna força da palavra para a construção de mundos. Jovens que se juntavam paracompartilhamentos literários, que emprestavam palavras para dizer em seus própriossotaques, para escrever os seus textos. Para elas e eles, a literatura foi virando espelhopara se ver, para olhar para trás e conhecer quem veio antes, para refletir o caminhopara quem chegou depois. A literatura em suas vidas, mesmo sem intenção, virouespaço de autoconhecimento, de conhecimento e reconhecimento de histórias que lhesforam escondidas.Jovens negras(os), jovens periféricas(os), construindo e ocupando bibliotecascomunitárias nas bordas do país, passaram a contribuir ativamente para que os livros5 Publicação disponível em:http://cclf.org.br/project/o-brasil-que-ler-bibliotecas-comunitarias-e-resistencia-cultural-na-formacao-de-leitores/.32http://cclf.org.br/project/o-brasil-que-ler-bibliotecas-comunitarias-e-resistencia-cultural-na-formacao-de-leitores/continuassem vivos e revelando autoras(es) colocadas(os) à margem. Contrariando asperspectivas mais pessimistas sobre o fim dos livros físicos e da espécie de “jovensleitores” com a imaginária presença maciça dos celulares em suas mãos, vemos ocrescimento dos saraus e dos slams, das editoras independentes e das livrarias de rua.Qual seria o segredo?O editor e livreiro Alexandre Martins Fontes6, indagado sobre os livroscontinuarem existindo apesar do avanço da tecnologia, apresentou dados sobre oaumento do número, da qualidade da produção gráfica e da diversidade doslançamentos, apesar da crise desencadeada pela pandemia da covid-19. SegundoAlexandre, embora o processo criativo seja cada vez mais digital e virtual, o livro físicocontinua sendo um objeto de arte insubstituível. Para explicar a emoção de se ter umlivro físico em mãos, ele recorre à imagem da ultrassonografia de uma gestante: pormais impressionante que seja a qualidade da imagem, nada se compara à emoção dese ter a(o) filha(o) no colo no nascimento. Parece difícil discordar dessa metáfora.Um outro fator para o fracasso do decreto de morte dos livros, arriscamos dizer,seriam os livros-espelhos; livros que possibilitam ver-se no que lê. Quando a(o)leitora(or) encontra narrativas, personagens e palavras que descem ao chão que ela ouele pisa, tudo faz mais sentido. Quando empresta seus olhos e voz para ler as memóriasdas e dos que vieram antes, para conhecer as histórias omitidas por meio de romances,crônicas, contos, poesias, Histórias em Quadrinhos que dão nome a suas dores e aosseus sonhos, percebe que não está sozinha(o) no mundo. Essa literatura que acolhe eaconchega, também convoca. Ler passa a ser um ato poético, educativo e político.6 Alexandre Martins Fontes foi recebido por Jair Marcatti no programa Café com repertório #12 - 31 de agosto de2022. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=aCRRrj10QxE.33https://www.youtube.com/watch?v=aCRRrj10QxENegras histórias: a memória como âncora ou velaA história da escravização de pessoas negras de origem africana no Brasil émarcada por sequestros, coisificação de corpos, violência física, exploração,hierarquização de saberes, tentativa de destruição do pensamento negro. Um perversoprocesso de apagamento e distorção das memórias da escravidão fez com que, pormuito tempo, o legado da escravidão fosse depositado nos ombros de descendentes deescravizadas(os), deixando a descendentes de escravizadores um certo orgulho por terabolido a escravidão e esquecido o passado. Algo está fora da ordem nessa história. Eos movimentos negros sabem bem disso. Por esse motivo reivindicaram a alteração daLei de Diretrizes e Bases da Educação do Brasil (Lei 9.394/1996) para a inclusão daHistória e Cultura da África e das(os) afro-brasileiras(os) no currículo escolar: o que foiconquistado com a Lei 10.639/20037, visando superar os muitos silêncios sobre apresença negra no Brasil.Os caminhos para romper o silêncio sobre as relações raciais no Brasil suscita ainquietante pergunta: “a memória é vela ou âncora?”8 . Para algumas pessoas, falar daescravização de pessoas negras africanas em nossas terras nos deixaria fixadas(os) aopassado. Para outras, recuperar essas memórias e histórias é o que pode nos lançarpara navegarmos por outros mares. Nesse breve artigo, não temos espaço para uma8 Pergunta feita por Eric Nepomuceno no programa Sangue Latino e que deu título a evento de reflexão sobre os200 anos da independência do Brasil e centenário da Semana de Arte Moderna, promovido pela Pró-reitora deCultura e Extensão da USP (PRCEU/ USP) em 14/09/2021.7 A Lei 10.639/2003 acrescenta os artigos 26-A, 79-A e 79-B à Lei no 9.394/1996 para incluir no currículo oficial daRede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira. A íntegra está disponível emhttps://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm.34https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htmanálise mais profunda sobre a escravidão. Recomendamos, caso não conheça, visitar oProjeto Querino: “um projeto que mostra como a História explica o Brasil de hoje”9.Falar de memória para as pessoas negras é falar de uma história de silênciosimpostos e de silêncios escolhidos como forma de sobrevivência. Quantas tataravós,bisavós, avós negras esconderam seus saberes ancestrais por medo de discriminação,numa cultura que impõe a vergonha por ter cabelo crespo e pele escura, por ser docampo ou conhecer ervas que curam, por professar a fé em religiões de matrizafricana?O contato de filhas(os), netas(os) e bisnetas(os) com essas lembrançastransformam a memória em vela. Se num primeiro momento as memórias são âncoraque levam à profundeza dos mares onde muitos corpos negros tombaram, em outros amemória é vela que avança ao mar10.Se no passado negras(os) tiveram que omitir suas autorias por terem “um defeitode cor”11, hoje, é preciso narrar em primeira pessoa. Trata-se do direito humano àmemória, a grafar novas palavras e levá-las para os livros sem pedir licença oudesculpas. É uma forma de garantir “o direito de escrever o vivido, de ressuscitar o queparecia sepultado, gravar o ainda por fazer, de preservar o passado e promoverrupturas”(QUEIRÓS, 2007, p. 36). A leitura de autoria negra é uma forma de preencheros vazios deixados pela ausência dessa narrativa, que representa mais da metade da11 Um decreto no período colonial exigia que pessoas negras interessadas em ingressar no clero ou no serviçomilitar pedissem “licença“ de seu “defeito de cor”.10 Referência a fala realizada por Bel Santos Mayer no evento virtual 3X22/ Memória é vela ou âncora?, promovidopela PRCEU/USP em 14/09/2021.9 Disponível em https://projetoquerino.com.br/ .35https://projetoquerino.com.br/população do país, e contribuir para que as gerações atuais e futuras se reconheçamcomo construtoras de pensamentos e capazes de sonhar e realizar seus destinos.Por que a literatura?Para a biblioteconomista colombiana Sílvia Castrillòn (2011), “ler pode ser ummeio para melhorar as condições de vida e as possibilidades de ser, de estar e de atuarno mundo”. É certo que a leitura literária sozinha não fará isso, mas sem ela pode sermais difícil construir um lugar no mundo.Esses assuntos que estariam reclusos aos livros de história podem entrar na salade aula, nas conversas, nos saraus pelo encontro com a fome descrita em Quarto deDespejo, por Carolina Maria de Jesus, no diálogo entre avós e netos em Os nove pentesd’África, de Cidinha da Silva, com as Heroínas Negras, de Jarid Arraes, nas lutas porliberdade em Ganga Zumba, de Marcelo D’Salete, nas escrevivências em PonciáVicêncio ou nas mulheres contadas em Olhos d’água, ambos de Conceição Evaristo, nasestratégias para ler e enfrentar o racismo vivido no próprio corpo como Na minha pele,de Lázaro Ramos.Ao ler a literatura de autoria negra há o reconhecimento de que pessoas negrasnão são redutíveis a duas ou três características estereotipadas. A literatura de autorianegra coloca negras(os) como sujeitos, produtoras(es) de pensamento, de saberes, decultura. É a possibilidade de construir um imaginário mais humano sobre si, de sesonhar no mundo como manifestou a escritora e estudiosa da literatura negra, Neide deAlmeida:Acredito que a literatura assim como as outras formas de arte (escultura,gravura, todas as outras linguagens) tem este papel fundamental de apresentar36outras possibilidades de representação. Quando você tem acesso a diferentesrepresentações de um sujeito, do mundo, da forma de você agir, da forma devocê pensar, aí que se cria a possibilidade de construir um posicionamento seu;um posicionamento que coincida com aquilo que você é. Então eu acredito que aliteratura tem um papel fundamental na construção das identidades, nosprocessos de representação (ALMEIDA, vídeo LiteraSampAfro lê Um defeito decor, 2016).Ao conhecer e apresentar autoras(es) negras(os), contribuímos para o(re)conhecimento de que negras e negros são parte do eixo criativo da literatura e doslivros. É uma oportunidade para todas(os) de superação de preconceitos eenfrentamento do racismo. Para jovens negras e negros, porém, ler autoras(es)negras(os) e saber que sua gente resistiu e resiste às práticas e profecias de suaextinção (assim como os livros), talvez seja questão de sobrevivên - cia e construção deuma identidade coletiva.Referências bibliográficasCATRILLÒN, Silvia. O direito de ler e de escrever. Pulo do Gato, 2011, p. 20.FERNANDES, Cida.; MACHADO, Elisa.; ROSA, Ester. O Brasil que lê: Bibliotecas comunitáriae resistência cultural na formação de leitores. Centro de Cultura Luiz Freire, RNBC, 2018.MASSUELA, Amanda.; Quem é e sobre o que escreve o autor brasileiro, In: CULT, 5 fev.2018. 05/02/2018, Disponível em: Acesso em: 15 set. 2022.QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Para ler em silêncio. São Paulo: Moderna, 2007.37Sobre a autoraBel Santos Mayer é educadora social, coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos eApoio Comunitário – IBEAC, co-gestora da Rede de Bibliotecas LiteraSampa, formadorade jovens mediadoras(es) de leitura, docente da pós-graduação Literatura paraCrianças e Jovens do Instituto Vera Cruz. Licenciada em Ciências/Matemática eBacharel em Turismo, tem especialização em Pedagogia Social, é mestra pelo Programade Pós Graduação em Turismo (EACH/USP), pesquisando a contribuição das bibliotecascomunitárias para o estudo das mobilidades.FonteArtigo publicado originalmente na Revista Na Ponta do Lápis (ano XVIII – número 39,novembro de 2022) – Sonhar um sonho tão bonito: como repensar as questõesétnico-raciais na educação.382.4Por que trabalhar literatura afro-brasileira na escola?Lara RochaQuando buscamos relembrar as aulas em que personagens negras(os)apareceram ao longo de nossa vida escolar, frequentemente pensamos na escravidãoou em contos folclóricos. Hoje, enquanto professoras(es), refletimos: será queestudantes negras(os) se sentiam representadas(os) por aquelas figuras? Como serácrescer vendo imagens que se parecem com você apenas em capítulos sobre osofrimento e a exploração? Que referências as(os) estudantes brancos terão sobreas(os) colegas? Como construirão suas relações a partir desses exemplos?Na tentativa de reverter esse quadro, o Movimento Negro12 por décadas criouestratégias e pressionou o Estado, de modo que, em 2003, foi sancionada a Lei10.63913, que altera a LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação - ao incluirobrigatoriamente o ensino das histórias e culturas africanas e afro-brasileiras noscurrículos escolares do Ensino Fundamental e Médio. Desse modo, os cursos superiores,principalmente os de formação de professoras(es), deveriam também adequar-se paracontemplar os aspectos citados na lei.Assista ao vídeo NOSSA VOZ ECOA | EP 09 - “Lei 10.639”14.14 Disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=-Pv0RTnsJak.13 Disponível no link http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm.12 "Movimento Negro (ou MN) é o nome genérico dado ao conjunto dos diversos movimentos sociais afro-brasileiros, particularmente aquelessurgidos a partir da redemocratização pós-Segunda Guerra Mundial, no Rio de Janeiro e São Paulo." Fonte:https://www.geledes.org.br/movimento-negro39http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htmhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htmhttps://www.youtube.com/watch?v=-Pv0RTnsJakhttps://www.youtube.com/watch?v=-Pv0RTnsJakhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htmhttps://www.geledes.org.br/movimento-negrohttps://www.geledes.org.br/movimento-negroEssa legislação atende reivindicações históricas de movimentos sociais por umapedagogia comprometida com a luta antirracista. Emdecorrência, em 2004, o Conselho Nacional de Educaçãoestabeleceu as Diretrizes Curriculares Nacionais para aEducação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino deHistória e Cultura Afro-Brasileira e Africana15, em queLiteratura, assim como História do Brasil e Educação Artística,consta como componente curricular que deve, em especial,contemplar sistematicamente as diretrizes orientadas pela lei.Assim, nos vimos obrigadas(os) a pensar: por que é tão importante falarmosdesse assunto? Se não tivemos aulas sobre este tema na universidade, comopoderemos ensiná-lo? E mais, como dar conta de trabalhar temas tão polêmicos e quepodem ter repercussões inesperadas?Com tantos desafios, muitas vezes nos sentimos paralisadas(os) e evitamosincluir a Literatura Afro-brasileira em nossos planejamentos. Para então reforçar aimportância desse trabalho, vamos começar nossa conversa retomando algunsaspectos da história da literatura brasileira.Um breve olhar sobre o lugar de negras(o)s na literatura brasileiraEm primeiro lugar, é notável que as participações da população negra no cânonese dão majoritariamente enquanto tema; raramente negras e negros sãoenunciadora(es) de suas histórias. Tal característica, por si só, já soa insatisfatória,mas torna-se ainda mais grave quando relembramos a composição da população15 Disponível no link http://www.uel.br/projetos/leafro/pages/arquivos/DCN-s%20-%20Educacao%20das%20Relacoes%20Etnico-Raciais.pdf.40http://www.uel.br/projetos/leafro/pages/arquivos/DCN-s%20-%20Educacao%20das%20Relacoes%20Etnico-Raciais.pdfhttp://www.uel.br/projetos/leafro/pages/arquivos/DCN-s%20-%20Educacao%20das%20Relacoes%20Etnico-Raciais.pdfhttp://www.uel.br/projetos/leafro/pages/arquivos/DCN-s%20-%20Educacao%20das%20Relacoes%20Etnico-Raciais.pdfhttp://www.uel.br/projetos/leafro/pages/arquivos/DCN-s%20-%20Educacao%20das%20Relacoes%20Etnico-Raciais.pdfbrasileira: em 2019, segundo a Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra deDomicílios Contínua), divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística),negras(os), pretas(os)s e pardas(os) eram maioria, representando 56,2% da população;as(os) brasileiras(os) que se declaravam brancas(os) eram 42,8%.Sabendo disso, por que conhecemos tão poucas(os) autoras(es) negras(os)?Buscando hipóteses que justificassem tamanha ausência, o professor epesquisador Eduardo de Assis Duarte (2008) destacaos séculos de escravidão ediscriminação sustentada, mesmo após a abolição, por meio de políticas de extermínioe de negação de direitos básicos, como saúde e educação, como principais fatores paraa construção de um imaginário de superioridade e dominação, impondo limites à culturae identidade da população negra, e impossibilitando que contassem suas própriashistórias.Consequentemente, a maior parte das obras literárias são construídas a partirde um ponto de vista branco e acabam evidenciando um olhar carregado deestereótipos, que não contemplam a complexidade de sujeitos negros.Em pesquisa acerca da produção literária do Brasil e dos modelos sociais que aconstroem, Regina Dalcastagnè (2005) elaborou uma espécie de perfil do escritorbrasileiro: homem branco, heterrossexual, de classe média e do sudeste.Sobre as(os) personagens, 93,9% são brancas(os), em sua maioria, homens(62,1%) e heterossexuais (81%). Aos 7,9% de personagens negras(os), estão relegadospapéis como bandidos ou contraventores (20,4%), empregadas(os) domésticas(os)(12,2%) ou escravizados (9,2%). Destes, apenas 5,8% são protagonistas e 2,7%narradores.41O infográfico a seguir, publicado por Niege Borges no site Ponto Eletrônico,organiza os dados recolhidos durante esta pesquisa:Outros conhecidos estudos16 sobre a presença do negro na literatura brasileiratendem a confirmar esses dados, apontando personagens inexpressivas, comparticipações breves e pouco marcantes ou carregadas de elementos que reafirmamestigmas raciais. Podemos perceber tais características em clássicos como O Cortiço,16 BASTIDE,1973; BERND, 1987; BROOKSHAW, 1983; CAMARGO, 1987; CUTI, 2010; DAMASCENO, 1988; DUARTE, 2013; FONSECA, 2002;PROENÇA FILHO, 2004; SAYERS, 1958.42de Aluísio de Azevedo, em que a icônica Bertoleza é tratada de modo submisso eanimalesco, enquanto Rita Baiana sustenta os estereótipos da mulata17 sedutora. Ou AEscrava Isaura, de Bernardo Guimarães, em que a personagem atravessa afrontas ebrutalidades dos senhores por meio do branqueamento. Desse modo, representaçõeseurocêntricas e estereotipadas, existentes desde o século XVI, são evidenciadas eperpetuam-se enquanto referências históricas, estabelecendo hegemonicamente aperspectiva branca e violentando, até hoje, as raízes da negritude.Assim, a produção literária hegemônica de autoria branca – que acaba poradentrar nossas bibliotecas e salas de aula – ainda que inclua personagens negras(os)em suas obras, por muitas vezes reproduzir tipos e argumentos racistas e esvaziadosde subjetividade, contribuiu para o apagamento do sujeito negro.Por outro lado, embora historiografias da literatura brasileira ignorem, outrasvozes existiram. Autoras e autores negros não se deixaram calar e aproveitaram-se debrechas, ainda que a estrutura racista desfavorecesse suas produções. É assim queidentificamos, ainda no século XIX, nomes como Domingos Caldas Barbosa(1738-1800), Maria Firmina dos Reis (1822-1927), Luiz Gama (1830-1882), Machado deAssis (1839-1908) Cruz e Souza (1861-1898), que sobreviveram ao esquecimento e àinvisibilização.No início do século XX, ganham destaque Lima Barreto (1881-1922), Antonieta deBarros (1901-1952) e Solano Trindade (1908-1974) que, apesar de limites impostos,difundem produções enredadas por aspectos raciais e sociais, e abrem portas paraautoras(es) da segunda metade do século. Fortalecem-se aí produções literárias de17 Entendemos que o termo mulata não é apropriado e já caiu em desuso. Utilizamos aqui apenas por ser o que foi empregado por Aluísio deAzevedo. Para entender mais sobre esta questão, recomendamos a leitura do artigo “Não me chame de mulata: uma reflexão sobre a traduçãoem literatura afrodescendente no Brasil no par de línguas espanhol-português”(http://www.scielo.br/pdf/tla/v57n1/0103-1813-tla-57-01-0071.pdf) e do poema homônimo de Jarid Arraes(https://www.geledes.org.br/nao-chame-de-mulata/).43http://www.scielo.br/pdf/tla/v57n1/0103-1813-tla-57-01-0071.pdfhttps://www.geledes.org.br/nao-chame-de-mulata/autoria negra que assumem seu pertencimento étnico e criam uma literaturacomprometida com as questões raciais, a exemplo de Carolina Maria de Jesus(1914-1977), Abdias do Nascimento (1914-2011) e de autores dos Cadernos Negros18,como Oswaldo de Camargo (1936), Conceição Evaristo (1946), Geni Guimarães (1947),Cuti (1951), Miriam Alves (1952), Esmeralda Ribeiro (1958) e Márcio Barbosa (1959).Temos ainda nomes fundamentais como Cidinha da Silva (1967), Ana Maria Gonçalves(1970), Cristiane Sobral (1974) e Lívia Natália (1979).A nova geração de escritoras(es) negras(os) brasileiras(os) desponta nos séculoXXI tendo, principalmente, a internet, saraus e slams como grandes aliados para adivulgação de suas obras. É assim que passamos a conhecer figuras brilhantes comoNina Rizzi (1983), Jennyffer Nascimento (1984), Mel Duarte (1988), Luz Ribeiro (1988),Jarid Arraes (1991), entre tantas outras.O papel da escolaEm 2003, com a promulgação da Lei 10.639, institucionaliza-se então apresença da literatura afro-brasileira nas salas de aulas, visando o trabalho comproduções que tenham uma abordagem mais sensível às múltiplas existências. A escola,consequentemente, tem um papel indispensável. Os recursos didático-pedagógicos,tanto por questões político-sociais, quanto pela qualidade do material, devem ter umaabordagem crítica e que inclua diferentes perspectivas. Esse caminho é fundamental18 Criada em 1978, e publicada anualmente e ininterruptamente desde então, a série Cadernos Negros tornou-se um marco, ao publicar contos epoemas de autoras e autores negros, tornando-se um dos principais veículos de divulgação da escrita afro-brasileira.44para a construção de um currículo apropriado, amplo, que evite os perigos das históriasúnicas.19Se até pouco tempo a instituição escolar tem sido um espaço difusor derepresentações negativas sobre negras e negros (GOMES, 2005), é fundamental queassuma o compromisso de valorizar os grupos historicamente discriminados para oconjunto da comunidade escolar e que crie condições para que todas as pessoasreconheçam a si e ao outro como detentores de experiências positivas (CARREIRA eSOUZA, 2013, p. 40).Do ponto de vista da formação do leitor literário na escola, o trabalho em sala deaula com produções afro-brasileiras comprometidas com práticas antirracistaspossibilitam também o reconhecimento pelas alunas e alunos de figuras negraspositivadas.Dentre as muitas possibilidades, essa prática incentiva também a discussãosobre questões raciais, o rompimento do silenciamento histórico, além de possibilitar amaior circulação de autores pouco conhecidos no mercado editorial.Vale ressaltar que estas obras podem – e devem! – ser trabalhadas das sériesiniciais aos anos finais da Educação Básica e ainda adentrar os espaços universitários.Os textos contemplam desde a valorização de aspectos físicos, como os cabeloscrespos, até elementos das religiões de matriz afro-brasileiras, além de retomar e criarnovas narrativas em que leitoras(es) de diferentes idades podem se enxergar eexperienciar aventuras, romances, mistérios e o respeito à diversidade. É extremamentesignificativo endossar que a construção da autoestima positiva não é viável19 ADICHIE, Chimamanda. O Perigo da História Única. Vídeo da palestra da escritora nigeriana no evento Tecnology, Entertainment and Design(TEDGlobal 2009).45https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcript?language=pthttps://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcript?language=ptindividualmente, mas resultado das relações e referências. Enxergar o outro comosujeito, nesse caso, é também enxergar-se como sujeito.Assim, o trabalho com essa temática em sala de aula é, acima de tudo, uma açãode cidadania, fortemente entrelaçada aos debates antirracistas contemporâneos,
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